Contos de Grimm

Os Contos de Fadas dos Irmãos Grimm, originalmente compilados por Jacob e Wilhelm Grimm, são uma coleção de contos populares atemporais que encantam leitores há séculos. Estes contos são um verdadeiro tesouro de folclore, apresentando histórias de coragem, magia e moralidade que ressoam através das gerações. Desde clássicos como ”Cinderela”, ”Branca de Neve” e ”João e Maria”, até joias menos conhecidas como ”O Pescador e sua Mulher” e ”Rumpelstiltskin”, cada história oferece um vislumbre do rico tecido da tradição oral europeia. Os Contos de Fadas dos Grimm são caracterizados por seus personagens vívidos, lições morais e frequentemente tons sombrios, refletindo as duras realidades e os elementos fantásticos de seus contextos históricos. Seu apelo duradouro reside em sua capacidade de entreter, ensinar e inspirar maravilha, tornando-os um alicerce da literatura infantil e uma fonte de fascínio para estudiosos do folclore e da narrativa.

Listen on:

  • Podbean App

Episodes

A chave de ouro

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Certa vez, durante o inverno, a terra estava toda coberta de neve e um pobre rapazinho foi obrigado a sair de trenó para arranjar um pouco de lenha.Quando já tinha juntado a lenha e carregado o trenó, sentiu-se tão enregelado que resolveu não voltar tão logo para casa e acender uma fogueira a fim de aquecer- se um pouco.Com o machado removeu a neve e, estando assim a limpar o chão, encontrou uma pequena chave de ouro. Então calculou que onde estava a chave deveria estar, também a fechadura; cavocou a terra e não tardou a descobrir uma caixinha de ferro. "Oxalá que a chave lhe sirva!" - pensou - esta caixinha com certeza encerra coisas preciosas."Virou-a de um lado e de outro mas não percebeu nenhum buraco; por fim, depois de verificar mais atentamente, descobriu um buraquinho, mas tão pequenino que quase não se via.Experimentou colocar a chave e esta servia perfeitamente. Deu uma volta e... Bem, agora temos de esperar até que se abra de todo e levante a tampa; só assim saberemos quais maravilhas havia na caixinha.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

As botas de búfalo

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Um soldado que não tem medo de nada, nunca se preocupa com nada. Um indivíduo desses foi dispensado e, como não tinha aprendido a fazer nada, não conseguia ganhar coisa alguma, e ia perambulando de cá para lá e pedindo à boa gente a caridade de uma esmola.O soldado usava um velho capote e conservava ainda as botas de couro de búfalo que recebera no exército. Certo dia, andava ele através dos campos, sem rumo definido, e foi andando, andando, até que chegou a uma floresta. O lugar era-lhe completamente desconhecido, mas não se importava com isso; eis que, sentado no tronco de uma árvore caída, viu um homem muito elegante, trajando um fato verde de caçador. Aproximou-se-lhe, estendeu-lhe a mão, sentou-se junto dele e espichou as pernas. Depois, disse ao desconhecido:- Noto que usas botas finas e polidas! Mas se tivesses de andar de cá e de lá, como eu, certamente não resistiriam muito. Olha para as minhas: são de couro de búfalo e já prestaram bons serviços, contudo ainda pisam bons e maus caminhos!Depois de ter descansado um pouco, o soldado levantou-se e acrescentou:- Não posso demorar-me, a fome me obriga a andar. Sabes porventura aonde vai dar este caminho, Senhor Botalustra?- Não sei, não, - respondeu o caçador; - eu mesmo estou extraviado aqui nesta floresta.- Então estamos nas mesmas condições, - retrucou o soldado; - Deus faz o homem e depois o junta; sendo assim, fiquemos juntos e vamos procurar o nosso caminho.O caçador sorriu, imperceptivelmente, e juntos prosseguiram o caminho. Andaram sem parar até cair a noite.- E não saímos da floresta, - disse o soldado; - mas estou vendo uma luz brilhando lá ao longe; quem sabe se encontraremos algo para comer!Dirigiram-se para o local onde brilhava a luz e deram com uma casa de pedra; bateram à porta e uma velha apareceu no limiar.- Estamos procurando abrigo para esta noite, - disse-lhe o soldado, - e um pouco de lastro para o bojo do estômago, porquanto o meu está tão vazio como um saco.- Aqui é impossível abrigar-vos, - respondeu a velha; - esta casa pertence a um grupo de bandidos; o melhor que tendes a fazer, é tratar de sumir quanto antes, pois se eles vierem e vos encontrarem aqui, estais perdidos.- Certamente não são o diabo em pessoa! - retorquiu o soldado; - há dois dias que não como nada e tanto me faz morrer aqui como arrebentar de fome na floresta. Vou entrar, não tenho medo.O caçador, porém, hesitava e não queria segui-lo, mas o soldado puxou-o pela manga do casaco e arrastou-o para dentro da casa, dizendo:- Vem, coraçãozinho, tens medo acaso que nos liquidem tão já?A velha compadeceu-se deles e disse:- Escondei-vos atrás do fogão; se sobrar alguma coisa do jantar deles, logo que se forem deitar, eu vô-la trarei aqui.Mas, apenas acabavam de esconder-se no cantinho indicado, os doze bandidos irromperam pela casa dentro e, fazendo uma algazarra infernal, sentaram-se à mesa e pediram o jantar.A velha serviu-lhes um enorme assado, que os bandidos devoraram sofregamente. O delicioso aroma da comida chegou ao nariz do soldado, que não se pôde conter e exclamou:- Não aguento mais; vou sentar-me lá com eles e encher o estômago.- Estás louco? - sussurrou o caçador; - queres que te matem? - e tentou segurá-lo pelo braço.Mas o soldado teve um acesso de tosse e os bandidos ouviram; então, largando facas e garfos, pularam e descobriram os dois refugiados atrás do fogão.- Ah, senhores, - exclamou um deles: - estais aí no cantinho? Que vindes fazer nesta casa? Alguém vos mandou espionar o que fazemos? Pois bem, já aprendereis como se voa na ponta de um galho seco!- Bem, bem; tenham modos! - disse o soldado; - estou morto de fome; dai-me antes de mais nada um pouco de comida, depois fazei de mim o que vos aprouver.Os bandidos estacaram surpresos, ante tamanha calma, e então o chefe do bando disse:- Pelo que vejo, não tens medo! Pois bem, terás a comida que quiseres, mas em seguida, não escaparás da morte.- Veremos! - disse o soldado. Sentou-se à mesa e atacou valentemente o assado.- Ó compadre Botalustra, vem comer! - gritou ele ao caçador. - Certamente estás com tanta fome como eu e em casa duvido que encontres um assado tão bom como este!O caçador, porém, não aceitou o convite. Os bandidos, estupefatos, olhavam para o soldado e diziam entre si:- Esse tipo não faz cerimônias!Daí a pouco, o soldado disse-lhes:- A comida me agradou muito; deem-me agora um copinho do bom!O chefe do bando, que excepcionalmente estava de bom humor, gritou à velha:- Vai à adega buscar uma garrafa, e do melhor!O soldado fez saltar a rolha bem alto, chegou para o caçador ostentando a garrafa e lhe disse:- Agora fica bem atento, amigo, pois vais ver maravilhas. Antes de tudo vou fazer um brinde à toda a companhia.Empunhou a garrafa e, brandindo-a à altura das cabeças dos bandidos, disse-lhes:- A vossa saúde! Laventai o braço direito para o alto e abri bem a boca! - e sorveu um largo trago.Tendo pronunciado aquelas palavras, os bandidos quedaram-se todos imóveis, com o braço direito estendido para o ar e a boca aberta; então o caçador disse ao soldado:- Vejo que és entendido em mágicas; mas agora, vem daí, vamos para casa.- Oh, meu coração, seria levantar o cerco muito depressa; batemos o inimigo, agora cuidemos do saque. Ei-los todos grudados nos seus lugares como que petrificados, de boca aberta e braço erguido e não se poderão mexer enquanto eu não o permitir. Vem, coração, come e bebe à vontade!A velha teve de trazer mais uma garrafa de vinho e o soldado não saiu da mesa senão após ter comido o suficiente para três dias. Finalmente, ao despontar do sol, disse:- Está na hora de levantar acampamento; para encurtar a marcha, a velha tem de nos ensinar qual o caminho mais curto que vai ter à cidade.Assim que chegou à cidade, foi procurar os antigos camaradas e disse-lhes:- Achei no meio da floresta um ninho de pássaros próprios para a forca; acompanhai-me, vamos desaninhá-los.Assumindo o comando do grupo de soldados, o nosso valentão disse ao caçador:- Vem conosco, assim poderás ver como se espojam quando os pegarmos pelos pés!Foram todos para a floresta, o soldado postou os seus homens em volta dos bandidos, pegou a garrafa e tomou um bom gole; depois, brandindo-a sobre as cabeças deles, disse:- A vossa saúde!No mesmo instante, os bandidos recuperaram os movimentos, mas foram imediatamente derrubados ao chão e, em seguida, amarraram-lhes os pés e as mãos com fortes cordas. Depois o soldado deu ordem para que fossem atirados como sacos dentro do carro.- Levai-os, diretamente, para a cadeia.Nisso o caçador chamou de lado um deles e sussurrou-lhe qualquer coisa.- Compadre Botalustra, - disse-lhe o soldado, - além de surpreender os bandidos todos, na toca, ainda nos abarrotamos de boa comida; agora, formar fila e marchar, tranquilamente, como fazem os retardatários.Quando estavam chegando, o soldado viu uma enorme multidão, um aglomerado de gente que vinha saindo pela porta da cidade. Bradavam todos cheios de júbilo e agitavam ramos verdes. E viu que a guarda nacional, em perfeita formação, também se aproximava.- Que significa isto tudo? - perguntou ele muito admirado ao caçador.- Ignoras certamente, - respondeu este, - que o rei há muito se achava fora do reino. Hoje ele está voltando para o seu povo, por isso todos lhe vão ao encontro jubilosos!- Mas, onde está o rei? - perguntou o soldado, - não o estou vendo!- Ei-lo aqui; - respondeu o caçador apresentando-se. - O rei sou eu e mandei que anunciassem a minha chegada.Falando assim, abriu a túnica de caçador e mostrou por baixo dela a roupa real. O soldado ficou estarrecido; caiu de joelhos e pediu perdão quase chorando, pois na sua ignorância o havia tratado como a um igual e, ainda por cima, lhe havia aplicado aquele apelido de Botalustra! O rei, sorrindo, estendeu-lhe a mão e disse:- Tu és um bravo soldado e me salvaste a vida. Daqui por diante, não passarás mais necessidades, eu cuidarei de ti. E se alguma vez quiseres comer um bom assado, tão bom como aquele dos bandidos, podes pedi-lo sem cerimônia às cozinhas reais. Mas, se pretendes fazer um brinde igual àquele, passa antes na minha sala e pede-me licença!Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A donzela Malvina

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Era uma vez um rei que tinha um único filho a quem muito queria. Um dia, este príncipe pediu em casamento a filha de outro rei muito poderoso, chamada, comumente, a donzela Malvina, cuja beleza era extraordinária. Mas o pai da princesa, que desejava dada em casamento a um outro príncipe, recusou esse pedido.Os dois jovens, porém, amavam-se muito e não queriam ser assim separados; então a donzela Malvina disse ao pai:- Não quero e nem poderia casar-me com nenhum outro homem, pois amo este príncipe.Diante desta atitude, o rei enfureceu-se e mandou construir uma torre escura, na qual nunca penetrava o mais leve raio de sol ou de luar. Assim que ficou pronta, disse à filha:- Ficarás presa nessa torre durante sete anos, findos os quais, quero ver se está ou não destruída a tua obstinação.Mandou levar para a torre alimentos e bebidas suficientes para sete anos. A princesa e sua aia foram para lá conduzidas e, em seguida, muraram a porta, deixando-as assim isoladas do céu e da terra.As pobres criaturas passavam o tempo no meio da escuridão, sem nunca saber quando clareava o dia ou quando caía a noite.O príncipe, desconsolado, continuava perambulando em volta da torre, sempre chamando a noiva pelo seu nome; mas nenhum som exterior conseguia penetrar através daqueles muros espessos. Portanto, que mais podia fazer senão chorar e lastimar-se?Enquanto isso, ia passando o tempo. Por fim, vendo que as provisões já estavam bem reduzidas, as duas infelizes compreenderam que os sete anos de segregação estavam para findar. E julgaram que a hora de sua libertação já houvesse soado; mas, por mais que apurassem o ouvido, não distinguiam nenhum ruído de martelos ou de pedras a deslocarem-se do muro; parecia mesmo que o pai as havia completamente esquecido.Notando que só lhes restava alimentação para una dias apenas e prevendo um fim horrível, a donzela Malvina disse à sua companheira:- Façamos uma suprema tentativa, procuremos com toda a coragem fazer uma abertura na parede!Resolvido isto, munidas de faca de cortar pão, puseram-se a escavar e a furar o cimento; quando uma estava cansada a outra substituía-a e assim trabalhavam o tempo todo. Após longo e penoso trabalho, conseguiram remover uma pedra, depois outra e mais outra, até que, dentro de três dias, viram penetrar naquelas trevas horrendas o primeiro e consolador raio de sol. Trabalharam com mais ardor, até que a abertura ficou bastante grande e elas puderam olhar para fora.O céu estava de um azul límpido e maravilhoso, a brisa fresca acariciou-lhes suavemente as faces, mas, onde seus olhos pousavam, só viam desolação. O castelo do rei, seu pai, era um montão de ruinas, a cidade toda e as aldeias, até onde seus olhos podiam alcançar, estavam arrasadas, os campos todos queimados: não se via alma viva, tudo estava destruído e morto.Alargaram mais a abertura, obtendo o tamanho suficiente para poderem sair; a camareira saiu em primeiro lugar, seguindo-a logo após a donzela Malvina. Mas para onde ir? O exército inimigo tinha devastado todo o reino, expulsado o rei e massacrado os habitantes, e elas não viam onde encontrar refúgio.Então encaminharam-se as duas em busca de outro país. Todavia, por todas as terras em que passavam não conseguiam encontrar abrigo ou alguma alma generosa que lhes desse um pedaço de pão. Tão grande era a fome, que tiveram de alimentar-se com um punhado de urtigas encontradas à margem da estrada.Andaram, andaram, andaram, por fim chegaram a um reino desconhecido o lá procuraram empregar-se como criadas, mas eram repelidas de todas as portas e não encontraram compaixão na alma daquela gente.Finalmente, chegaram à capital do reino e dirigiram- se ao paço real. Aí, também, foram convidadas a seguir o caminho mas, o cozinheiro, vendo-as tão abatidas, compadeceu-se delas e disse que podiam empregar-se como faxineiras e lavadeiras, sob suas ordens.Aconteceu que o filho do rei, em cujo palácio estavam empregadas, era justamente o antigo noivo da donzela Malvina. Querendo que se casasse, o pai tinha-lhe arranjado uma noiva, tão feia de coração como de rosto. O dia do casamento já estava marcado e a noiva já havia chegado; mas, por causa da sua feiura, não ousava apresentar-se em público e permanecia fechada no quarto. A donzela Malvina fora encarregada de servi-la e levar-lhe a comida.Ao chegar o dia em que o príncipe devia conduzir à igreja a noiva, ela sentiu-se tão envergonhada de aparecer e tão receosa de ser escarnecida pelo povo, que disse à donzela Malvina:- Ouve aqui, cai-te do céu uma sorte inesperada; eu torci o pé e estou impossibilitada de me pôr a caminho para a igreja; tens portanto que vestir o meu traje nupcial e substituir-me; honra maior do que esta não podias esperar!Mas a donzela Malvina recusou a proposta, dizendo:- Não quero honras que não me pertencem.A outra ofereceu-lhe uma grande quantia em ouro; tudo foi completamente inútil, não conseguia convencê-la. Por fim enraiveceu-se e disse-lhe asperamente:- Se não me obedeceres, arriscarás a vida; pois basta que eu diga uma só palavra para que tenhas a cabeça decepada.Diante disto, a moça teve que obedecer; vestiu os trajes suntuosos e adornou-se com as joias da noiva.E quando se apresentou na sala do trono, os convidados ficaram extasiados ante sua grande beleza; e o rei disse ao filho:- Aqui está a noiva que escolhi para ti; conduze-a ao altar.Estupefato, o noivo matutava: "É estranho, parece-se tanto com a minha donzela Malvina que até parece ser ela em pessoa; infelizmente, porém, há tantos anos foi encerrada na torre que talvez já tenha morrido." Ofereceu a mão à noiva e conduziu-a à igreja. Mas, pelo caminho encontraram à margem da estrada, um pé de urtiga e então a moça disse:
- Urtiga.minha urtiga, coitadinha;que fazes aqui tão sozinha?Certa vez por aqui passeimorta de fome, e te devorei!
- Que estás dizendo? - perguntou-lhe o príncipe.- Oh, nada! - respondeu ela - estava apenas lembrando a donzela Malvina.O príncipe ficou admirado que ela a conhecesse, mas não disse nada. Quando chegaram ao pé da escadaria diante da igreja, ela disse:
- Ó degrauzinho, não vás te quebrar,a verdadeira noiva não vês passar!
- Que disseste? - tornou u perguntar o noivo.- Nada! - respondeu ela - estava só pensando na donzela Malvina.- Tu conheces a donzela Malvina? Não, não! como poderia conhecê-la? Apenas tenho ouvido falar nela,Quando chegaram à porta da igreja, ela disse mais uma vez:
- Ó poria da igreja, não vás desabar!a verdadeira noiva não vês passar.
- Mas que estás a dizer? - perguntou o noivo.- Oh, estava apenas lembrando a donzela Malvina.Antes de penetrar na igreja, o príncipe tirou do bolso um magnífico e precioso colar, colocou-o no pescoço da noiva e apertou bem o fecho; em seguida, dirigiram-se ao altar onde o padre uniu suas mãos e deu-lhes a bênção, tornando-os marido e mulher.O príncipe e a noiva voltaram para casa, mas, durante todo o caminho, ela não abriu a boca para dizer uma palavra. Chegando ao castelo real, ela correu para o quarto da outra noiva e despiu as roupas nupciais. Depois tornou a vestir suas pobres roupas cinzentas, mas conservou no pescoço o colar que recebera do noivo.A noite, a noiva devia ser conduzida ao quarto nupcial, mas tratou de cobrir o rosto com um véu a fim de que o noivo não lhe visse a feiura e não descobrisse o embuste. Assim que os criados se retiraram, o príncipe perguntou-lhe:- Conta-me agora o que disseste ao pé da urtiga que encontramos à margem da estrada.- Qual urtiga? - perguntou ela; - eu não tenho o hábito de falar com urtigas!- Se não o fizeste, então não és tu a verdadeira noiva! - disse o príncipe; mas ela tentou sair da embrulhada, dizendo:
- Com a minha criada preciso ir ter,para que faça minha memória reviver!
Dirigiu-se ao quarto da donzela Malvina e perguntou-lhe asperamente:- Ó criatura, que foi que disseste ao pé da urtiga?- Disse-lhe simplesmente isto:
- Urtiga,minha urtiga, coitadinha;que fazes aí tão sòrinha?Certa vez por aqui passei,morta de fome, e te devorei!
A noiva voltou correndo para o quarto nupcial e disse ao príncipe:- Agora lembro-me do que disse ao pé da urtiga!- E repetiu textualmente as palavras que acabara de ouvir.- E ao pisar os degraus da igreja, que foi que disseste?- Que degraus? - disse ela admirada; - eu não costumo falar com degraus!- Se é assim, então não és tu a verdadeira noiva,- repetiu ele desconfiado.Mas ela fez o mesmo que fizera antes:
- Com a minha criada preciso ir ter,para que faça minha memória reviver!
Saiu correndo, foi ao quarto da criada e perguntou com brutalidade:- Que é que disseste ao pisar os degraus da igreja?- Eu disse apenas isto:
- Ô degrauzinho, não vás te quebrar,a verdadeira noiva não vês passar!
- Ainda terás que pagar com a vida! - gritou-lhe a noiva, mas foi correndo para o quarto e disse ao príncipe:- Só agora me lembro o que disse ao pisar os degraus da igreja! - e repetiu as palavras ouvidas.- Está bem, mas dize-me agora que foi que disseste ao transpor o umbral da igreja?- Que umbral? Eu jamais falei com um umbral!- Não? Então não és tu a verdadeira noiva!Ela voltou a perguntar à donzela Malvina:- Conta-me já, que foi que disseste no umbral da igreja?- Disse só isto:
- Ô porta da igreja, não vás desabar!a verdadeira noiva não vês passar.
-Ordenarei que te cortem a cabeça! - esbravejou a noiva possessa de raiva. Mas, saiu correndo, c foi ter com o noivo, ao qual disse:- Lembro-me agora do que disse à porta da igreja! - e repetiu as palavras da outra.- E, dize-me, onde está o colar que coloquei no teu pescoço e que prendi com minhas próprias mãos, ao entrarmos na igreja?- Que colar? Nunca me deste colar nenhum.- Não te lembras então do que eu te coloquei no pescoço? Se ignoras isto é porque não és a verdadeira noiva!Assim dizendo, arrancou-lhe o véu do rosto e, ao dar com aquela monstruosa feiura, pulou para trás espantado, perguntando horrorizado:- Como vieste aqui? Quem és tu?- Eu sou a tua verdadeira noiva. Com medo que o povo me escarnecesse ao passar pelas ruas, mandei a criada vestir minhas roupas e seguir para a igreja em meu lugar.- E onde está agora essa moça? - perguntou o príncipe; - quero vê-la! Vai buscá-la e traze-a à minha presença.A noiva encaminhou-se depressa, mas disse aos criados que aquela faxineira era uma embusteira, que a levassem portanto ao fundo do quintal e lhe decepassem a cabeça.Os criados apoderaram-se da pobre moça e tentavam arrastá-la para o local do martírio, mas ela pôs-se a gritar com todas as forças e a pedir socorro. O príncipe ouviu aqueles gritos, saiu correndo do quarto e mandou que a soltassem imediatamente. Quando trouxeram luzes e ele pôde ver o colar de pérolas que lhe colocara ao pescoço na porta da igreja, exclamou radiante:- Ah, tu é que és minha verdadeira noiva! A mesma que foi comigo á igreja. Vem comigo, vamos para os nossos aposentos.Assim que ficaram sós, ele lhe disse:- Quando íamos para a igreja, ouvi-te mencionar a donzela Malvina, que foi minha noiva; se isto fosse possível, acreditaria té-la agora na minha presença, tal a semelhança que tens com ela.- Pois sou eu mesma a donzela Malvina; a mesma que por teu amor passou sete anos presa na torre escura. Passei muita fome e sede e durante bastante tempo vivi na mais negra miséria; hoje, porém, o sol volta a brilhar para mim. Na igreja nós é que fomos unidos cm matrimônio, portanto sou eu a tua verdadeira esposa.Então abraçaram-se e beijaram-se, com a maior alegria, e foram imensamente felizes pelo resto da vida.Ao passo que a perversa noiva feia foi decapitada.A torre onde permanecera a donzela Malvina conservou-se sólida durante muitos anos e quando as crianças iam brincar perto dela. costumavam cantar:
- Din, don dan,Na torre quem está?Está uma princesaque ninguém podo vere o muro romper,nem a pedra furar.Joãozinho de paletó xadrezinho,corre, vem me pegar!
Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A bola de cristal

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, uma feiticeira que tinha três filhos, os quais se amavam extremosamente. Mas a velha não confiava neles e vivia a desconfiar de que pretendiam expropriá-la. Então transformou o mais velho numa águia, a qual tinha de viver nos píncaros rochosos e só, às vezes, era vista descrevendo grandes círculos no espaço, descendo e subindo com as largas asas abertas.Ao segundo filho, transformou numa baleia que vivia nas profundezas do mar, podendo ser vista só quando subia à tona e de suas costas saía um repuxo de água que espirrava à grande altura. Foram concedidas aos dois apenas duas horas por dia, nas quais podiam retomar seu aspecto humano.O terceiro filho, temendo que a mãe o transformasse, também, nalgum animal feroz, urso ou lobo, fugiu de casa às escondidas.Ele ouvira contar que no castelo do Sol de Ouro havia uma princesa encantada, que aguardava a sua libertação; mas se alguém tentasse libertá-la arriscaria a vida. Vinte e três rapazes já haviam perecido deploravelmente; ainda um podia apresentar-se e, depois desse, mais ninguém.Sendo um rapaz destemido e arrojado, resolveu ele procurar o castelo do Sol de Ouro. Depois de andar muito tempo, sem conseguir encontrá-lo, foi parar numa grande floresta; tendo-se extraviado, não sabia como sair dela. De repente, avistou ao longe dois gigantes acenando-lhe com a mão e, quando se lhes aproximou, disseram-lhe:- Estamos brigando por causa de um chapéu; queremos saber a quem de direito deve pertencer. Como somos os dois de igual força, nenhum pode vencer o outro. Os homens pequenos são mais inteligentes do que nós, por isso pedimos que tu decidas.- Como é possível engalfinhar-se assim, por causa de um simples chapéu? - disse ele.- E' que não conheces as propriedades que possui; esse é um chapéu mágico; quem o põe na cabeça, chega, no mesmo instante, a qualquer lugar que deseje.- Dai-me um pouco esse chapéu! - disse o rapaz; - vou andar até àquela distância e, quando vos chamar, correi os dois juntos; quem chegar primeiro ganhará o chapéu.Pegou o chapéu, botou-o na cabeça e foi andando, andando. Mas, pensando sempre na princesa, exalou um suspiro do fundo da alma e murmurou:- Ah, quem me dera estar no castelo do Sol de Ouro!Mal lhe saíram da boca essas palavras, eis que se achou no cume de uma montanha, bem em frente à porta do castelo.Sem hesitar, penetrou no castelo e foi atravessando todos os aposentos até chegar a uma sala onde estava a princesa. Mas como se espantou ao vê-la! tinha o rosto de uma cor cinzenta e cheio de rugas, os olhos torvos e os cabelos vermelhos. Sem se poder conter, exclamou:- Então, sois vós a princesa cuja beleza é exaltada no mundo inteiro?- Oh, - respondeu ela - esta não é a minha fisionomia real! Os olhos humanos só podem ver-me assim deformada, mas, se queres saber como sou realmente, olha naquele espelho: ele não engana e te mostrará a minha verdadeira imagem.Assim dizendo, apresentou-lhe um espelho e o rapaz, olhando para ele, viu refletida a imagem da mais linda moça que pudesse existir no mundo. E viu lágrimas de intenso sofrimento escorrendo-lhe pelas faces. Então perguntou:- Que posso fazer para te libertar desse encanto? Dize, pois eu não temo coisa alguma.A princesa disse-lhe:- Quem conseguir apoderar-se da bola de cristal e apresentá-la ao feiticeiro, anulará o seu poder e eu readquirirei o meu verdadeiro aspecto. - Mas acrescentou: - Muitos já encontraram a morte por tê-lo tentado! Lamento, imensamente, que tu, tão jovem, queiras expor-te a tão graves perigos.- Nada poderá deter-me, - respondeu o rapaz; - dize-me, porém, que devo fazer para me apoderar da bola de cristal.- Já vais saber tudo; - disse a princesa. - Se quiseres descer a montanha onde está o castelo, lá embaixo, perto de um manancial, encontrarás um feroz bisão, com o qual terás de lutar. Se conseguires matá-lo sairá dele um pássaro de fogo, voando, o qual tem no corpo um ôvo incandescente; nesse ôvo, no lugar da gema, está a bola de cristal. Mas o pássaro não deixa cair o ôvo se não for violentamente obrigado a isto; além disso, se o ôvo cair no chão, quebra-se e incendeia tudo à sua volta, destruindo-se no fogo juntamente com a bola de cristal; de maneira que, nesse caso, todo o teu trabalho terá sido inútil.O rapaz desceu até ao manancial onde se encontrava o bisão, o qual o recebeu bufando e resfolegando, ameaçador. No mesmo instante, travou-se entre os dois uma tremenda luta e o rapaz conseguiu enterrar-lhe a espada no ventre, prostrando morta a terrível fera, Imediatamente saiu voando o pássaro de fogo, procurando elevar- se no espaço; mas a águia, que era o irmão do rapaz, chegou nesse momento através das nuvens, investiu contra o pássaro e com o bico adunco empurrou-o para o mar. A ave, vendo-se em perigo, deixou cair o ôvo.Mas o ôvo não caiu no mar; caiu sobre uma choupana de pescadores situada na praia. Caindo em cima dela, imediatamente se elevou uma nuvem de fumaça e ateou- se o fogo; então se elevaram no mar ondas da altura de uma casa, despejaram-se sobre a choupana e extinguiram o fogo. Fora obra do outro irmão, transformado em baleia, que, vendo o fogo, sublevara as ondas.Depois de extinto o incêndio, o rapaz foi em busca do ôvo e, por grande sorte, o achou. Não tivera tempo de derreter-se, mas a casca incandescente, esfriada repentinamente pela água gelada, partira-se toda. Assim lhe foi possível extrair a bola de cristal.Quando, finalmente, foi ter com o feiticeiro e exibiu a bola de cristal ao seu olhar, o bruxo disse-lhe:- Meu poder está anulado; de hoje em diante serás o rei neste castelo do Sol de Ouro. E tens poder, também, de restituir a teus irmãos a forma humana.Então o rapaz correu para junto da princesa e, ao entrar na sala em que se achava, ela surgiu-lhe pela frente em todo o esplendor de sua radiosa beleza.Cheios de alegria, trocaram as alianças que os devia unir e viveram na mais perfeita felicidade.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O velho Rink Rank

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, um rei que tinha uma única filha. Esse rei mandara construir uma alta montanha toda de vidro e declarou que só daria a filha em casamento ao rapaz que conseguisse galgar a montanha sem cair.No reino, havia um jovem que estava apaixonado pela princesa e perguntou ao rei se poderia casar-se com ela.- Sim, - respondeu o rei, - com a condição, porém, de galgares a montanha de vidro sem cair.A princesa, que também gostava do rapaz, declarou-se disposta a galgar u montanha com ele, a fim de ajudá-lo para que não caísse. E juntos iniciaram a escalada. Mas quando a princesa já se achava na metade do caminho, escorregou e caiu; a montanha fendeu-se e ela precipitou-se dentro da brecha. O noivo não pôde ver onde ela fora parar, porque a montanha se fechou imediatamente sobre ela.Entretanto, a princesa chegou às profundezas da montanha e foi ter a uma grande caverna No mesmo instante. viu surgir à sua frente um velho de longas barbas grisalhas, o qual lhe disse que, se concordasse em ser sua criada e obedecer às suas ordens, teria a vida salva: do contrario a mataria. Não tendo outra solução, a princesa aceitou fazer tudo o que ele queria.Todas as manhãs, o velho vestia uma roupa de couro, pegava uma sacola e uma picareta e ia fazer escavações na montanha e. à noite, quando regressava, trazia a sacola cheia de ouro e prata.A princesa tinha de preparar-lhe a comida, arrumar a cama e fazer todos os demais serviços da casa; tudo devia estar em ordem quando ele chegasse.Depois que ela passou muitos anos na caverna e ficou velha, ele passou a chamá-la de Senhora Vermelhona e ela. por sua vez, podia chamá-lo de velho Rink Rank.Certo dia. em que o velho tinha saído como de costume, ela arrumou a cama. lavou a louça e a roupa, depois fechou bem as portas e janelas, deixando a casa completamente às escuras, sem entrar um tênue fio de luz sequer, e ficou lá dentro.Quando o velho regressou, bateu na porta, dizendo:- Senhora Vermelhona, abra-me a porta!- Não. - respondeu ela; - não te abrirei a porta, velho Rink Rank!Ele então disse:
- É Rink Rank. o pobrezinho.setenta anos. coitadinho!tão fraco já! tem compaixãoe lava, peço-te, o meu calção.
- Teus calções eu já lavei! - respondeu ela de dentro.Ele tornou a falar:
- É Rink Rank, o pobrezinho,setenta anos, coitadinho!se compaixão tens no peito,arruma, peço-te, o meu leito.
- Teu leito já arrumei! - respondeu ela.E o velho tornou a dizer:
- É Rink Rank, o pobrezinho,setenta anos, coitadinho!tem uma palavra que conforta;peço-te que me abras a porta.
Depois começou a correr ao redor da casa para ver se estava aberta nalgum lugar. Por fim pensou:- Espia pela fresta para ver o que ela está fazendo e por que não quer abrir a porta!Empurrou um pouco a porta e pela fresta tentou passar a cabeça para espiar, mas a longa barba incomodava- o; enfiou para dentro a barba, então a princesa fechou a porta e a barba ficou prosa; ela mais que depressa amarrou-a com um cordel.O pobre velho começou a gritar horrivelmente, implorando que a soltasse, porque lhe estava doendo muito.Mas ela respondeu que não abriria antes que lhe desse a escada que usava para sair da montanha. Querendo ou não, ele teve de revelar onde guardava a escada. Tendo-a encontrado, ela amarrou-a numa corda comprida e desceu pela montanha até à caverna do velho, e conseguiu sair de lá.Foi diretamente para a casa do pai e contou-lhe tudo o que havia sucedido. O rei e o noivo ficaram muito alegres com a sua volta. Em seguida, foram escavar a montanha e descobriram o velho Rink Rank com todo o seu ouro e prata. O rei mandou matá-lo e carregou o imenso tesouro para o castelo.A princesa ainda casou com o antigo noivo e ambos viveram muitos anos, imensamente ricos e felizes.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

Os guardas da sepultura

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Um rico camponês estava, certo dia, sentado à porta da granja. Do lugar onde estava, a vista estendia-se ao longe, abrangendo todos os campos, prados, vinhas e pomares. O trigo ondulava viçoso e as árvores vergavam ao peso das frutas. As espigas do ano anterior ainda estavam no celeiro, em feixes tão grandes, que as traves mal os podiam suportar.Depois de admirar toda essa bela propriedade florescente, o camponês dirigiu-se para as cavalariças e estábulos; lá, também, estava tudo cheio de magníficas vacas, bois muito gordos e cavalos bem nutridos com o pelo luzidio e espesso. Em seguida, entrou em casa e deu uma vista de olhos na caixa forte, que estava estufada de dinheiro.Enquanto se achava assim, a considerar satisfeito sua imensa riqueza, ouvi-o uma pancada, mas não era na porta de casa que batiam, era na porta do seu coração. Esta abriu-se e ele ouviu uma voz que lhe sussurrava:- É realmente grande a tua opulência! Mas, dize- me beneficiaste os teus parentes? Pensaste alguma vez na extrema indigência dos pobres? Distribuiste do teu pão aos que tinham fome? Ficaste satisfeito com o que possuías, ou desejaste insaciavelmente mais ainda?O coração ouviu tudo e daí a pouco respondeu:- Ê verdade, nunca ajudei os meus parentes. Quando um pobre me estendia a mão eu virava o rosto para outro lado, fingindo não o ver. Não pensei em Deus nem nos seus mandamentos, cogitando tão somente em aumentar a minha fortuna. Mesmo se tudo o que existe sob o sol me pertencesse, ainda não seria suficiente para a minha ambição.Ouvindo esta confissão, ele horrorizou-se, sentiu os joelhos vergarem e teve que sentar-se para não cair no chão. Nesse momento, ouviu bater, mas desta vez na porta de sua casa. Era o seu vizinho, um pobre homem que tinha uma ninhada de filhos e se achava em tal miséria que não sabia o que lhes havia de dar para comer. Ao bater nessa porta, ele pensava: "Eu sei que este meu vizinho é muito rico, mas também cruelmente impiedoso; não creio que me venha em auxílio; os meus filhos, porém, estão chorando de fome e pedem um pedaço de pão; eu devo implorar a sua misericórdia, ainda que me faça expulsar pelos criados."Ao entrar, disse humildemente ao rico:- Sei que não vos agrada ser importunado com pedidos de auxílio; mas já estou soçobrando; meus filhos choram de fome; emprestai-me quatro medidas de farinha, tudo farei para vô-las restituir.O rico ficou a observá-lo bastante tempo; nisso o primeiro raio da caridade começou a derreter o gelo que endurecia o seu coração, e disse:- Não te emprestarei as quatro medidas de trigo; quero dar-te oito medidas da melhor farinha e pão para os teus filhos; contudo, imponho uma condição!- Se estiver ao meu alcance, tudo farei com a maior boa vontade! - respondeu o pobre.- Quero que me prestes um serviço: quando eu morrer deves velar durante as três primeiras noites, após o meu enterro, sobre a minha sepultura.O pobre vizinho ficou arrepiado ante essa perspectiva, mas na triste situação em que se encontrava, estava disposto a aceitar qualquer encargo que o ajudasse um pouco; portanto, prometeu o que o outro lhe pedia; em seguida, foi levar aos filhos o pão e a farinha que em tão boa hora chegavam.A conversa do rico fora como que um pressentimento do seu próximo fim. Com efeito, três dias depois, caiu fulminado por uma síncope que o prostrou morto. Ninguém sabia explicar como isso se dera; o certo é que sua morte não foi chorada.Depois do enterro, o vizinho pobre lembrou-se da promessa; preferia, é claro, não cumpri-la, contudo pensou: "Ele foi caridoso para mim, salvou meus filhos da fome e, além disso, eu prometi; é meu dever fazer o que me pediu."Por conseguinte, quando anoiteceu lá se foi, tremendo de medo, instalar-se ao pé da sepultura do vizinho. Reinava grande silêncio no cemitério, a lua brilhava envolvendo em claridade todos os túmulos e, de tempos a tempos, um mocho esvoaçava soltando hu, hu, lamentáveis.Assim que amanheceu, o pobre regressou à casa são e salvo. Na segunda noite voltou ao cemitério e tudo se passou sem novidades, como na noite anterior. Na terceira noite, porém, ele sentiu-se invadido por inexplicável medo, como se pressentisse algo de anormal.Quando ia entrando no cemitério viu, encostado ao muro, um indivíduo desconhecido. Já não era moço e no rosto enrugado brilhavam dois olhos penetrantes. Estava todo envolto num velho capote, deixando à mostra apenas as botas de soldado.- Que vos traz aqui? - perguntou o camponês: - Não ficais arrepiado de medo neste cemitério solitário?- Não procuro e não temo nada, - respondeu o outro; - sou como aquele rapaz que percorreu o mundo para aprender a ter medo, sem o conseguir. Também eu não tenho medo de coisa alguma, porém não tenho a sorte, como ele, de casar com a filha do rei e ganhar imensos tesouros; eu continuo sempre pobre. Sou um simples soldado licenciado e resolvi passar a noite aqui, porque não tenho onde ir.- Bem, se não tendes medo de nada, - disse o camponês, - ficai então comigo; ajudai-me a vigiar esta sepultura.- Montar guarda é próprio do soldado! - disse o outro. - Aconteça o que acontecer aqui, repartiremos os riscos e os lucros.O camponês apertou-lhe a mão e ambos foram sentar- se sobre a sepultura. Tudo permaneceu tranquilo, mas, ao dar meia-noite, ouviu-se subitamente nos ares um silvo agudo e as duas sentinelas viram surgir à sua frente Satanás em carne e osso.- Safem-se daqui, seus patifes, - gritou ele em voz terrível. - O defunto que aí jaz pertence-me e venho buscá-lo. Retirem-se imediatamente, senão torço- lhes o pescoço.- Senhor da pluma vermelha, - retorquiu o soldado, - tu não és o meu capitão, portanto não preciso obedecer-te; quanto ao medo, é uma arte que ainda não aprendi. Vai cuidar da tua vida e deixa-nos aqui sossegados.O diabo pensou: "O dinheiro é o melhor meio para convencer estes dois maltrapilhos." Mudou de tom e perguntou, confidencialmente, se não lhes agradaria receber uma bolsa bem recheada de moedas de ouro e voltar para suas casas.- É um assunto que podemos discutir! - respondeu o soldado. - mas o que oferece, não é bastante. Se quiseres dar-nos tanto quanto caiba dentro de uma das minhas botas, então te cederemos o lugar.- O que trago comigo não chega, - disse o diabo - mas vou já buscar mais; na próxima cidade há um banqueiro meu amigo; ele me emprestará o suficiente para encher essa bota.Assim dizendo, alçou-se no espaço e desapareceu; o soldado então, mais que depressa, descalçou a bota esquerda, dizendo:- Vamos pregar uma peça a esse tição! Empresta- -me um pouco a tua faca, companheiro.Em seguida, tirou com a faca a sola da sua bota e suspendeu-a a um ramo de salgueiro, bem por cima de uma grande cova aberta e meio escondido entre arbustos.- Assim está bom, - disse o soldado; - agora esse fuliginoso pode vir!E os dois companheiros sentaram-se calmamente; ao cabo de algum tempo voltou o diabo, trazendo na mão um saquinho cheio de moedas de ouro.- Muito bem, - disse o soldado, - despeja-o dentro da bota; a meu ver isso não é bastante.O diabo despejou o saquinho, mas as peças de ouro saíam pelo buraco e caiam na cova, deixando a bota vazia.- ô demônio estúpido, - gritou o soldado, - isso não está certo; eu não disse logo que não bastaria? Volte à cidade e apanhe mais.O diabo, muito admirado, sacudiu a cabeça e foi. Daí a alguns momentos, regressava trazendo uma quantidade bem maior.- Bem, - disse o soldado, - deita-o na bota. Mas duvido que baste para enchê-la.O ouro caia tilintando e a bota continuava vazia; não se conformando, o diabo olhou com seus olhos em brasa dentro da bota c se convenceu que realmente estava vazia.- Tens as pernas escandalosamente grossas! - disse o diabo fazendo uma careta muito feia.- Pensas acaso, - retorquiu o soldado, - que tenho um pé de cavalo como tu? Desde quando te tornaste tão tacanho? Trata de trazer mais ouro, senão fica sem efeito o combinado.O diabo tornou a voar para a cidade. Desta vez demorou-se mais e quando por fim apareceu, vinha ofegando ao peso de um saco que lhe fazia curvar as costas. Despejou-o todo dentro da bota que, ainda desta vez, continuou vazia. Então, teve um acesso de fúria e quis investir contra o soldado, mas, justamente nesse instante, despontou no céu o primeiro raio do sol, e o Maligno teve de fugir em meio a terríveis imprecações. Com isso, a alma do defunto estava salva.O camponês propôs que repartissem entre si todo aquele ouro, mas o soldado disse-lhe:- A parte que me toca, distribui-a entre os pobres; eu virei morar contigo na tua casinha e com o que sobrar viveremos tranquilos e contentes até quando Deus quiser.E assim fizeram. E na casa do camponês reinou a maior felicidade.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A espiga de trigo

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Naqueles tempos longínquos, em que o bom Deus andava ainda pela terra, a fertilidade do solo era bem maior do que agora; nessa época as espigas não produziam apenas cinquenta ou sessenta grãos, mas sim quatrocentos ou quinhentos.Os grãos brotavam desde baixo até em cima da haste; tal o comprimento da haste, assim era o comprimento da espiga.Mas, vejam como são os homens! Na fartura, esquecem-se das bênçãos de Deus e se tornam indiferentes e despreocupados.Certo dia, uma mulher ia passando por um trigal e o filhinho, que lhe ia pulando ao lado, caiu dentro de uma poça d'água e sujou-se todo. Então, a mulher arrancou um punhado daquelas belas espigas e limpou-o.Vendo aquilo, o Senhor, que justamente ia passando naquele momento, zangou-se e disse:- Daqui por diante as hastes não produzirão mais espigas; os homens são indignos dos favores que recebem do céu.Os que se achavam aí por perto, ao ouvir isso alarmaram-se, caíram de joelhos aos pés do Senhor e suplicaram-lhe que lhes deixasse ainda alguns grãos nas pontas das hastes; mesmo que não fossem merecedores, fizesse-o ao menos pelas pobres aves, que não tinham culpa e não podiam morrer de fome.O Senhor, prevendo a miséria da humanidade, apiedou-se e atendeu à súplica que lhe era dirigida.Por isso é que a espiga se tomou mais curta e produz grãos somente nas pontas, como vemos até hoje.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

Tamborzinho

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Uma noite, um jovem tocador de tambor, Tamborzinho, ia indo pelos campos e passou à margem de um grande lago; na beira do lago, viu três pequenas peças de linho muito alvo e fino.- Que fino linho, - disse ele e guardou uma no bolso.Foi para casa e não pensou mais no achado. Deitou- se para dormir e já estava quase adormecendo, quando teve a impressão de que alguém o chamava pelo nome. Sentou-se na cama e prestou atenção; uma vozinha delicada chamava-o de mansinho;- Tamborzinho, Tamborzinho, acorda!Não conseguiu distinguir nada em meio àquelas trevas mas, subitamente, pareceu-lhe ver um vulto pairando no espaço, como se estivesse voando de um lado para outro da cama. Então perguntou:- Que desejas?- Devolve-me a minha camisinha, - respondeu a voz - que ontem à tarde apanhaste à beira do lago.- Tê-la-ás, respondeu ele - se me disseres quem és.- Eu sou a filha de um poderoso rei - responde a vozinha; - tive a infelicidade de cair nas garras de uma terrível bruxa e agora vivo encerrada na montanha de vidro. Todos os dias devo banhar-me no lago junto com minhas irmãs mas, sem a minha camisinha, não poderei voar para a montanha. Minhas irmãs já se foram e eu tive de ficar. Suplico-te, Tamborzinho, restitui-me a minha camisinha!- Tranqüiliza-te, pobre menina, - disse o Tamborzinho; - eu ta restituo com a maior boa vontade!Tirou a camisinha do bôlso e entregou-lha. Apanhando-a ràpidamente, ela tratou de sair correndo, mas êle a deteve:- Espera um momento, quem sabe se te poderei ajudar!- Só me poderás ajudar se conseguires subir na montanha de vidro e libertar-me do jugo da bruxa. Mas na montanha não chegarás c, mesmo que chegasses ao pé dela, não poderías subir até no alto.- O que eu quero, sempre posso, - disse o Tamborzinho; - tenho muita pena de ti e não receio coisa alguma. Só que não conheço o caminho que conduz até là.- A estrada passa através da grande floresta, onde habitam os papões, - respondeu ela - e mais não posso dizer-te.O rapaz ouviu como que um adejar de asas e o vulto desapareceu. Ao despontar a aurora, ele se pôs a caminho, com o tamborzinho a tiracolo e, sem sombra de medo, meteu-se pela floresta a dentro.Após ter caminhado bastante tempo sem avistar gigante algum, ele pensou consigo mesmo: "tenho que despertar esses dorminhocos!" e, ajeitando o tambor, pôs-se a tocar tão fortemente que os pássaros fugiram voando das árvores, soltando gritos espavoridos. Daí a pouco, levantou-se, também, um gigante que estava dormindo, deitado no chão, o qual era tão alto como o maior pinheiro.- Olá, anãozinho! - gritou - que é que vens tamborilar aqui e despertar-me no melhor do sono?- Estou rufando o tambor, - respondeu o rapaz, - porque atrás de mim vêm vindo milhares de companheiros e devo ensinar-lhes o caminho.- E que vêm fazer teus companheiros aqui na minha floresta? - indagou o gigante.- Querem liquidar-te a fim de limpar a floresta de um monstro como tu!- Oh, - disse o gigante, - pois eu vos esmigalharei todos como formigas.- Acreditas que podes fazer alguma coisa contra eles? - disse, zombeteiro, o rapaz. - Quando te inclinares para pegar um deles, este te escorregará por entre os dedos e irá esconder-se, e se voltares a te deitar para dormir, todos eles pularão do meio das moitas e treparão no teu corpo. Cada qual traz um martelo de aço preso ao cinto e com ele te farão mil rombos na cabeça!O gigante ficou preocupado e matutou: "Se me meto com estes danados, poderei sair-me mal; lobos e ursos posso estrangular facilmente, mas contra vermes desta espécie não sei como me defender!"- Escuta aqui, amostra de gente, - disse o gigante - volta para tua casa. Prometo-te que daqui por diante te deixarei em paz e, também, a teus companheiros. Agora, se desejas alguma coisa, podes pedir; por ti farei tudo o que estiver ao meu alcance.Tamborzinho não hesitou, foi logo dizendo:- Tu tens as pernas bem mais compridas que as minhas e podes correr mais depressa do que eu; leva-me sobre a montanha de vidro, assim poderei dar aos meus companheiros o sinal de retirada e, por esta vez, ficarás em paz.- Então sobe aqui, vermiculo, - disse o gigante - senta-te no meu ombro; eu te levarei aonde quiseres.Assim dizendo, pegou o Tamborzinho e sentou-o no ombro; de lá de cima, o rapaz começou a tocar o tambor com quantas forças tinha. O gigante deduziu: "Deve ser o toque de retirar para os companheiros."Depois de andar um bom trecho, encontraram no caminho outro gigante; este pegou o rapaz no ombro do companheiro e colocou-o na lapela do paletó. Tamborzinho agarrou o botão da lapela, que era do tamanho de uma bacia, e segurando-se firmemente nele, divertia-se a olhar para todos os lados.Pouco mais adiante, encontraram um terceiro gigante, o qual tirou o rapaz da lapela do segundo e colocou-o na aba do chapéu. Lá em cima, o rapazinho divertia- se ainda mais: andava para diante e para trás, espiando por sobre as copas dos arvoredos; de repente, avistou alémdas árvores uma alta montanha. Alegrou-se pensando: "Deve ser a montanha de vidro." E era mesmo.O gigante só teve que dar mais dois passos para chegar até ela. Pegou o rapaz e depositou-o no chão; este, então, pediu-lhe que o levasse até ao cume da montanha, mas o gigante meneou a cabeça, resmungou qualquer coisa entre dentes e voltou a internar-se na floresta.O pobre do Tamborzinho ficou a olhar para a montanha, tão alta quanto três montanhas sobrepostas e, além do mais, lisa como um espelho, sem saber como pudesse subir lá no topo. Tentou escalá-la, mas em vão; cada vez que o tentava, escorregava para baixo. "Ah, se eu fosse um passarinho!" - murmurava ele. Mas nada adiantava esse desejo, as asas não lhe nasciam nas costas!Estava ele assim, sem saber o que fazer e nem para que santo apelar, quando viu a certa distância dois homens lutando ferozmente. Aproximou-se-lhes e ficou sabendo que brigavam por causa de uma sela que estava no chão, perto deles, e a razão por que cada qual a desejava para si.- Mas que grande tolice, - disse-lhes, - brigar por causa de uma sela quando não tendes sequer o cavalo para usá-la!- A sela vale bem esta briga! - respondeu um dos contendores; - pois quem sentar nela e desejar ir a qualquer lugar, mesmo que seja ao fim do mundo, chegará no instante que acabar de expressar o desejo. A sela pertence aos dois igualmente e agora chegou a minha vez de montar nela; porém, o meu companheiro não quer admitir.- Pois bem, - disse o rapaz, vou decidir essa questão.Andou algumas dezenas de passos, fincou uma estaca branca no chão, voltou sobre os passos e disse:-Agora correi até aquela estaca; quem chegar primeiro montará na sela.Os dois saíram a toda velocidade; porém, mal se haviam distanciado um pouco, Tamborzinho, mais que depressa, montou na sela e desejou ser levado ao cume da montanha de vidro; num abrir e fechar de olhos, achou- se lá em cima.No cume da montanha, havia um planalto e no centro dele uma velha casa de pedra, diante da qual se via um enorme tanque e, do lado oposto, uma floresta gigantesca.Mas não viu homens nem animais; por toda parte, reinava um pesado silêncio; somente o vento gemia por entre o arvoredo e as nuvens desfilavam tão baixo que quase lhe roçavam a cabeça. O rapaz foi até à porta e bateu. Na terceira vez que bateu, veio abrir uma velha de rosto escuro e olhos vermelhos; trazia os óculos encarapitados sobre o nariz adunco e, através das lentes, fitou-o agressivamente, de alto abaixo, e por fim perguntou o que desejava.- Quero entrar, comer e dormir esta noite, - respondeu o rapaz.- Terás tudo isso, - disse a velha - se em troca fizeres três coisas.- Como não? - respondeu o rapaz - trabalho nenhum me assusta, por mais árduo que seja!A velha deixou-o entrar, serviu-lhe comida e à noite deu-lhe uma boa cama para dormir. Pela manhã, ao despertar, a velha tirou um dedal que usava no dedo ressequido e disse-lhe:- Agora vai trabalhar; aqui tens este dedal, com ele deves esvaziar o tanque e precisas terminar antes do anoitecer; todos os peixes que estão dentro devem ser retirados, selecionados e colocados um ao lado do outro, de acordo com a própria espécie e tamanho.- É uma tarefa muito esquisita! - disse o rapaz; mas foi ao tanque e começou a tirar a água.Passou a manhã toda nesse trabalho, mas que é que se pode fazer com um pequeno dedal diante de tanta água? Nem mesmo no espaço de mil anos conseguiria levar a termo a empreitada! Ao soar meio-dia, ele pensou: "É inteiramente inútil o meu esforço, tanto faz que trabalhe ou não!"Desanimado, desistiu de trabalhar e sentou-se aí ao lado. Nisso, da casa veio uma jovem trazendo-lhe o almoço num cestinho e lhe disse:- Parece que estás muito triste; que tens?Ele ergueu os olhos e viu que a moça era belíssima.- Ah, - suspirou - a primeira das três tarefas que me foram impostas não consigo levar a termo; que será das outras? Ando à procura de uma princesa que, suponho, deve encontra-se nesta casa, mas não a encontrei. Acho melhor, portanto, continuar a minha viagem até encontrá-la.- Não te vás, não! fica aqui, eu te ajudarei a executares a tua tarefa. Vejo que estás fatigado; deita tua cabeça no meu regaço e dorme um pouco! Ao acordar, verás o trabalho terminado.Tamborzinho não esperou que lho dissesse duas vezes; deitou-se e dormiu placidamente. Quando viu que estava com os olhos fechados, a moça girou um anel mágico que tinha no dedo e ordenou:- Água para cima; peixes para fora!Imediatamente a água começou a evaporar-se e, como uma névoa branca, foi juntar-se às nuvens; e os peixes, de um salto pularam para a beirada, colocando-se um ao lado do outro, de acordo com a própria espécie e tamanho.Ao despertar, o rapaz viu com assombro a tarefa terminada. A jovem disse-lhe:- Um dos peixes não se juntou aos seus semelhantes e ficou de lado, sozinho. À tarde, quando chegar a velha e vir que tudo foi feito conforme as suas ordens, ela te perguntará: - Que significa esse peixe aí sozinho? - Tu, então, atira-lho no rosto e dize: "Este é para ti, velha bruxa!"E assim foi. À tarde, a velha chegou e fez a tal pergunta; então o rapaz atirou-lhe o peixe no rosto. Ela fingiu não dar por isso, calou-se, lançando-lhe apenas um olhar ameaçador. Na manhã seguinte, chamou-o e disse-lhe:- Ontem te arranjaste mui facilmente, hoje vou dar-te uma tarefa mais difícil. Tens que cortar todas as árvores da floresta, picar a lenha e arranjá-la em pilhas; tudo deve ficar pronto antes do anoitecer. \E entregou-lhe um machado, um malho e uma cunha; mas o machado era de chumbo, o malho e a cunha eram de lata. Portanto, ao dar a primeira machadada, o machado ficou amassado, o malho e a cunha entortaram-se. O rapaz não sabia onde dar com a cabeça. Entretanto, ao meio-dia, chegou a jovem com o alrhôço e animou-o dizendo:- Repousa a lua cabeça no meu regaço e dorme; quando acordures teu trabalho estará pronto.Quando ele fechou os olhos, ela deu uma volta no anel mágico e eis que a floresta inteira ruiu por terra fragorosamente; a lenha partiu-se por si mesma e empilhou-se sozinha; parecia que numerosos gigantes invisíveis estivessem realizando aquilo tudo. Quando o rapaz despertou, ela lhe disse:- Estás vendo? a lenha já está toda empilhada em boa ordem, salvo aquele galho. Hoje à tarde, quando a velha chegar e perguntar a razão disso, tu deves pegar o galho e fustigá-la bem, dizendo:- Isto é para ti, velha bruxa!De fato, ao entardecer, chegou a velha e foi dizendo:- Viste como era fácil o trabalho? mas para quem ficou esse galho aí solto?- É para ti, velha bruxa! - respondeu o rapaz e fustigou-a em cheio no rosto.A bruxa fez de conta que nada sentira; sorriu sarcasticamente e disse:- Amanhã bem cedo, tens de fazer uma só pilha, com toda esta lenha, depois tens de atear-lhe fogo e queimá-las antes do anoitecer.Assim que raiou o dia, o rapaz levantou-se da cama e foi juntar a lenha na floresta; mas quem consegue, sozinho, empilhar a lenha de uma floresta inteira?O trabalho não progredia nada. A jovem, porém, não o abandonou naquela angústia. Ao meio-dia, levou- lhe o almoço; depois de ter almoçado, ele deitou a cabeça no seu regaço e adormeceu. Ao despertar, um pouco mais tarde, a imensa pilha de lenha, toda a lenha da floresta, ardia numa vertiginosa labareda que elevava línguas rubras até ao céu.- Escuta, - disse-lhe a jovem - quando a bruxa vier, vai exigir de ti as coisas mais absurdas; não tenhas medo e faze tudo o que ela te ordenar, pois nada de mal poderá fazer-te! Se, porém, ficares com medo, então o fogo te destruirá. Depois de feito tudo o que ela ordenou, agarra-a com as duas mãos e atira-a para o meio das chamas.A jovem foi-se embora e, pouco depois, chegou cautelosamente a velha.- Uh, que frio! mas temos aqui um belo fogo; vou aquecer meus velhos ossos ao calor destas chamas; como me sinto bem aqui! Vejo lá um tronco que não está ardendo, vai buscá-lo e traze-mo! Se conseguires tirá-lo de dentro do fogo, ficarás livre e poderás ir para onde te aprouver. Anda, pula depressa na fogueira!Sem hesitar, Tamborzinho deu um pulo no meio das chamas e estas não lhe fizeram o menor mal, nem mesmo lhe sapecaram o cabelo; pegou, rapidamente, o tronco e colocou-o no chão, no lugar indicado por ela. Mal tocou o chão, o tronco, que não se queimara, transformou- se instantaneamente na bela jovem que o vinha auxiliando nas mais difíceis conjunturas. O rapaz não teve dificuldade em reconhecer nela, pelos ricos trajes bordados a outro e cintilantes de pedrarias, a princesa encantada. A velha, porém, riu-se escarninha mente e disse:- Tu pensas que ela já é tua; mas não é ainda!Ia avançar para a moça, a fim de levá-la dali, mas o rapaz agarrou-a com as duas mãos e atirou-a no meio das chamas, que a envolveram completamente, e pareciam felizes de poderem, enfim, devorar a bruxa.A princesa contemplou Tamborzinho e achou-o bem bonito. Lembrou-se, também, que ele estivera todo otempo arriscando a própria vida para libertá-la da bruxa; então estendeu-lhe a mão e disse:- Tu ousaste tudo por mim; eu, também, quero fazer por ti tudo o que me fôr possível. Se juras manter-te fiel ao meu amor, serás meu esposo. Riquezas não nos faltam; teremos muitíssimo com o que a velha acumulou aqui.Depois levou-o para casa e mostrou-lhe a enorme quantidade de arcas onde a velha guardava os tesouros. Desprezando o ouro, os dois encheram os bolsos de pedras preciosas c não quiseram demorar-se mais naquela montanha de vidro. Tamborzinho disse à princesa:- Senta-te comigo na sela e juntos voaremos para a planície como dois pássaros.- Não me agrada montar nessa velha sela; - disse a jovem - é bastante que eu dê uma volta no meu anel mágico para chegarmos felizmente em casa.- Está bem, - respondeu o rapaz; - então formula o desejo de chegarmos até à porta da cidade.Num bater de olhos, acharam-se lá; aí Tamborzinho disse:- Antes de mais nada, preciso ver meus pais e dar- lhes minhas notícias; espera-me aqui no campo, voltarei em poucas horas.- Por favor, - disse a princesa, - peço-te que tomes cuidado e não beijes teus pais na face direita, quando lá chegares, senão esquecerás tudo o que se passou e me deixarás abandonada aqui no campo.- Como poderei esquecer-te? - respondeu o rapaz; e jurou que estaria de volta o mais cedo possível.Entretanto, chegando em casa ninguém o reconheceu e não sabiam quem era, porque o tempo passado na montanha de vidro, que a ele pareceu terem sido apenas três dias, foram em vez três anos e, nesse período, ele havia mudado bastante. Deu-se a conhecer aos velhos pais e estes, no auge da alegria, abraçaram-no e beijaram-no nas duas faces.O rapaz estava tão feliz que esqueceu, completamente, a promessa feita à princesa e beijou todo mundo nas duas faces. Mal beijou os pais na face direita, de sua mente apagou-se tudo o que se passara e, também, a princesa.Sem pensar em nada mais, despejou sobre a mesa as pedras que lhe enchiam os bolsos; os pais ficaram tão embasbacados que não sabiam o que fazer com tamanha riqueza. Então o velho construiu um esplêndido palácio, cercado de belos jardins, bosques e prados, exatamente como se nele tivesse que habitar um rei. Uma vez concluído o palácio, a mãe disse:- Escolhi uma noiva para ti; daqui a três dias festejaremos as bodas.O filho concordou e achou certo tudo o que decidiam os pais.Enquanto isso, a pobre princesa esperara um tempo enorme, junto da porta da cidade, que seu noivo regressasse. E quando anoiteceu, logo imaginou:- Com certeza Tamborzinho beijou os pais na face direita e me esqueceu.Seu coração encheu-se de tristeza; desejou estar numa casinha solitária no meio da floresta; não querendo voltar à casa do pai, o anel realizou o seu desejo.Mas dirigia-se, diariamente, à cidade e passava diante da casa do rapaz; ele viu-a algumas vezes passando por lá, mas não a reconheceu. Até que um dia, ela ouviu o povo comentar:- Amanhã, casa-se Tamborzinho.Seu desespero aumentou e decidiu consigo mesma: "Quero tentar, ainda uma vez, reconquistar seu coração!"Assim pois, no primeiro dia da festa nupcial, ela deu uma volta no anel mágico e pediu um vestido brilhante como o sol. No mesmo instante, o vestido estava diante de seus olhos; era tão brilhante que parecia tecido com puros raios de sol.Ela se vestiu e foi à festa. Quando entrou na sala, os convidados lá reunidos ficaram deslumbrados com aquele magnífico vestido, especialmente a noiva que, tendo grande paixão pelos trajes suntuosos, dirigiu-se à desconhecida para que lhe vendesse aquele lindo vestido.- Não o venderei por dinheiro algum! - respondeu a princesa; - mas, se me permitires passar a primeira noite junto da porta do quarto de teu noivo, o vestido será teu.A noiva, não podendo dominar o seu desejo, concordou; mas teve o cuidado de deitar narcótico no vinho do noivo e assim ele dormiu pesadamente.Quando reinou o silêncio na casa, a princesa acocorou-se diante da porta, abriu uma pequena fresta e chamou:
- Tamborzinho, escuta, escuta:Já de todo me olvidaste?Na montanha não estiveste comigo?Da perversa bruxa não te dei abrigo?Apertando-me a mão, fidelidade não juraste?Tamborzinho escuta, escuta!
Mas o lamento foi inútil; o rapaz não acordou e nada ouviu; ao romper do dia, a princesa teve que retirar- se sem nada ter conseguido.Na segunda noite, ela deu uma volta no anel e pediu: "Quero um vestido prateado como o luar," e o vestido lhe foi entregue.Desta vez, também, ao entrar no salão da festa com o maravilhoso vestido delicado como o luar, despertou a cobiça da noiva, que o obteve em troca da permissão dada à princesa de passar à noite na soleira do quarto do noivo. E, na quietude da noite, seu lamento foi o mesmo da noite anterior:
- Tamborzinho, escuta, escuta:Já de todo me olvidaste?Na montanha não estiveste comigo?Da perversa bruxa não te dei abrigo?Apertando-me a mão, fidelidade não juraste?Tamborzinho escuta, escuta!
Mas Tamborzinho, entorpecido pelo narcótico, não acordou do profundo sono. Muito triste, assim que rompeu a manhã, ela teve que partir sem ter conseguido nada, indo chorar as mágoas na casinha da floresta.Alguns criados, porém, tinham ouvido as palavra? da jovem desconhecida e foram comunicá-las ao noivo, dizendo que ele nada ouvira porque lhe fora ministrado um narcótico no vinho.Na terceira noite, a princesa girou mais uma vez o anel e pediu: "Quero um vestido rutilante como as estrelas."E, quando ela surgiu na festa, com esse vestido esplendoroso, a noiva ficou fora de si pelo desejo de possui-lo, e murmurou:- Hei de possuí-lo, custe o que custar!De fato, deu a permissão solicitada pela princesa c obteve o cobiçado vestido. Nessa noite, porém, o noivo não bebeu o vinho que lhe foi oferecido antes de deitar, disfarçadamente jogou-o fora; e, assim, quando reinou silêncio na casa, ele ouviu uma voz meiga e delicada dizer:
- Tamborzinho, escuta, escuta:Já de iodo me olvidaste?Na montanha não estiveste comigo?Da perversa bruxa não te dei abrigo?Apertando-me a mão, fidelidade não juraste?Tamborzinho escuta, escuta!
No mesmo instante, Tamborzinho sentiu reavivarse-lhe a memória.- Ah, - exclamou - como pude agir tão perversamente? A culpa foi do beijo que, sem pensar, dei * face direita de meus pais; foi ele quem me fez esquecer tudo!Pulou da cama, correu para a princesa o, tomando- lhe a mão, conduziu-a ao quarto de seus pais.- Esta é a minha verdadeira noiva, - disse; - se me casar com outra, cometerei n mais atroz das injustiças.Após tomarem conhecimento de tudo quanto ocorrera, os pais acharam justo o casamento; então mandaram iluminar novamente a casa, chamaram os tocadores de tímpanos e alaúdes, convidaram todos os parentes e amigos e as núpcias verdadeiras foram realizadas entro festas e grande alegria.A outra noiva, como compensação, ficou com os maravilhosos vestidos e deu-se por satisfeita.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O ladrão mestre

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Certo dia, estavam sentados, em frente de pobre casinha, um homem e sua esposa, descansando do trabalho. Nisto chegou uma bela carruagem, atrelada com quatro cavalos pretos, e dela apeou um senhor luxuosamente vestido. O campônio levantou-se e foi ao encontro do senhor, perguntando o que desejava e em que podia servi-lo. O desconhecido apertou-lhe a mão e disse: - Desejo, apenas, saborear um prato dessa boa comida do campo. Preparai algumas batatas à vossa maneira, sentar-me-ei à mesa convosco e as comerei com imenso prazer.O campônio sorriu e disse:- Vós sois, sem dúvida, conde ou príncipe, talvez mesmo duque; os grandes fidalgos costumam ter desses desejos! E o vosso será satisfeito.A mulher foi para a cozinha e começou a lavar e descascar as batatas, querendo fazer um bom prato de "nhoques," desses que os camponeses tanto apreciam. Enquanto ela cuidava dessa tarefa, o campônio disse ao desconhecido:- Enquanto esperamos, vinde comigo até à horta; ainda tenho de terminar um pequeno serviço lá.Na horta, ele havia aberto algumas covas onde pretendia plantar mudas de árvores.- Não tendes nenhum filho que vos possa ajudar? - perguntou o desconhecido.- Não, - respondeu o campônio, e acrescentou: - Na verdade tive um mas, há muito tempo ele nos deixou para correr mundo. Era um rapaz viciado, inteligente e malicioso, mas não tinha vontade de aprender coisa alguma; só sabia pregar-me as piores peças. Um dia, fugiu de casa e nunca mais tive notícias dele.Assim dizendo, o campônio colocou uma muda dentro da cova o enfiou uma estaca ao lado; depois de socar bem a terra em volta, amarrou a haste ao pau, embaixo, no meio e no alto, com um cipòzinho.- Dizei-me uma coisa, - disse o desconhecido, - por que não amarrastes uma estaca também àquela árvore torta ali do canto, àquela contorcida e nodosa que está vergada quase até ao chão?O velho sorriu e disse:- Senhor, falais como todos os que não entendem do assunto; bem se vê que nunca lidastes com uma horta. Aquela árvore contorcida já está velha e ninguém poderá mais endireitá-la. As árvores devem ser endireitadas quando são novinhas.- Tal como o vosso filho! - disse o desconhecido; - se o tivésseis educado quando era pequenino, não teria fugido de casa. Agora ele, também, se terá endurecido e contorcido.- Naturalmente! - respondeu o campônio. - Já faz tanto tempo que se foi, deve estar bem mudado!- Se ele se apresentasse agora, ainda o reconheceríeis? - perguntou o desconhecido.- Pela cara, dificilmente! - respondeu o campônio, - mas o reconheceria por um sinal em forma de feijão que tem no ombro.Quando ele disse isto, o desconhecido despiu o paletó, descobriu o ombro e mostrou o sinal em forma de feijão.- Senhor Deus meu! - exclamou o velho: - então és o meu filho!E o amor paterno agitou-lhe o coração; mas acrescentou:- Como é possível que sejas meu filho, se és fidalgo e vives na opulência e na fartura? Por quê caminho chegaste a tal altura?- Ah, meu, pai! - respondeu o filho, a arvorezinha tenra não foi amarrada à estaca, no tempo devido, e cresceu torta! Agora está velha e não endireita mais. Como ganhei tudo isto? Tornei-me ladrão. Oh não te assustes, eu sou um mestre ladrão! Para mim, não existem fechaduras ou ferrolhos que resistam; quando quero alguma coisa, tomo-a. Não creias, porém, que me reduzi a roubar como gatuno vulgar; eu apodero-me, somente, do supérfluo dos ricos; os pobres podem ficar descansados, a eles prefiro dar do que tomar. Assim como não me interessa o que me possa vir ás mãos sem trabalho, astúcia ou habilidade.- Ah, meu filho, - disse tristemente o pai, - de qualquer maneira teu ofício não me agrada; ladrão é e será sempre ladrão, e nunca acaba bem, digo-te eu!Conduziu-o à presença de sua mãe e, quando esta soube que ele era seu filho, chorou de alegria; e quando ficou sabendo que ele era ladrão mestre, as lágrimas corriam-lhe das faces como caudais. Entretanto, assim que conseguiu falar, disse:- Mesmo que se tenha tornado ladrão, é sempre meu filho, e meu olhos tiveram a graça de vê-lo ainda uma vez!Depois, foram para a mesa e ele comeu em companhia dos pais a modesta comida caseira, que há tanto tempo não comia. O pai lembrou:- Se nosso amo, o conde lá do castelo, souber quem és e o que fazes, creio que não te pegará no colo e não te ninará como quando te levou à pia batismal; acho que te mandará balouçar na ponta da corda de uma forca.- Não te preocupes, meu pai; ele não me fará nada; pois sei bem como são as coisas. Hoje mesmo irei visitá-lo.Ao cair da tarde, o ladrão subiu na carruagem e foi ao castelo. O conde recebeu-o amavelmente, julgando que fosse um grande fidalgo. Mas, assim que ele se deu a conhecer, o conde empalideceu e, durante alguns minutos, perdeu a fala. Depois disse:- Tu és meu afilhado, por isso serei clemente e te tratarei com toda a indulgência. Como, porém, te gabas de ser ladrão mestre, quero pôr à prova tua habilidade.Mas, se fizeres fiasco, eu te mandarei dançar na ponta da corda pelo espaço e, como música de acompanhamento, terás o doce crocitar dos corvos.- Senhor conde, - respondeu o ladrão, - inventai três empreendimentos difíceis quanto quiserdes, se eu não os levar a cabo, fazei de mim o que vos aprouver.O conde pensou durante alguns minutos e depois disse:- Está bem! Em primeiro lugar, deves roubar da cavalariça meu cavalo predileto; em segundo lugar, quando minha mulher e eu estivermos dormindo, tens de tirar o lençol que temos debaixo do corpo sem que possamos perceber; também tens de tirar a aliança que minha mulher traz no dedo; por fim, tens que raptar da igreja o padre e o sacristão. Toma nota de tudo direito, porque é a tua vida que está em jogo.O mestre ladrão despediu-se e foi à cidade vizinha. Lá adquiriu a roupa de uma velha campònia e vestiu-se. Pintou o rosto de cor bronzeada, desenhando algumas rugas. de maneira a ficar irreconhecível; em seguida, comprou um barrilete de velho vinho da Hungria, misturando-lhe forte narcótico. Meteu o barrilete num cesto. que pôs às costas e, com passos trôpegos e arrastados, voltou ao castelo do conde.Quando chegou lá, já era escuro. Sentou-se numa pedra que havia no terreiro, pôs-se a tossir como uma velha asmática e a esfregar as mãos como se estivesse morrendo de frio.Em frente à cavalariça, havia um grupo de soldados, deitados ao pé de uma fogueira; um deles, vendo aquela velha a tossir, gritou-lhe:- Ei, avozinha, chega aqui perto, vem aquecer-te conosco. Cama para dormir não tens mesmo e deves aceitar o que te oferecem, vem pois aquecer-te aqui!A velha aproximou-se com passinhos miúdos e pediu que lhe tirassem o cesto das costas; depois sentou-se junto deles ao pé do fogo.- Que tens aí nesse barrilzinho, velha bruxa? - perguntou um dos soldados.- Tenho um dedo de excelente vinho, - respondeu ela; - preciso vender alguma coisa, se quero viver! Dinheiro e boas palavras, com isso poderás ter um copo.- Vamos lá, dá-me um copo, então! - exclamou o soldado e, depois de provar o vinho, disse: - quando o vinho é bom, gosto de beber mais de um copo! - e pediu mais. Os outros seguiram-lhe o exemplo.- Olá, camaradas! - gritou um deles aos que estavam dentro da cocheira. - Está aqui a vovozinha oferecendo um vinho tão velho quanto ela mesma; tomai um copo que isso vos aquecerá o estômago melhor que o fogo.A velha levou o barrilete dentro da cachoeira. Um dos soldados estava montado no cavalo predileto do conde; outro o estava segurando pelo freio, e o terceiro pelo rabo. A velha pôs-se a distribuir o excelente vinho tanto quanto lho pediam e, assim, foi até esvaziar o barrilete.Não demorou muito, o soldado que segurava o freio largou-o e rolou pelo chão, onde se pôs a roncar deliciosamente; o outro largou o rabo, caiu deitado e roncou mais alto ainda; o que estava montado, permaneceu na sela, mas pendeu o corpo para a frente até tocar com a cabeça no pescoço do cavalo; ferrou no sono e assoprava como um velho fole.Lá fora, os demais dormiam há muito, deitados no chão e imóveis como se fossem de pedra.O ladrão, ao ver que tudo lhe saíra às mil maravilhas, colocou uma corda na mão daquele que segurava o freio; ao que segurava o rabo, pós-lhe na mão um punhado de palha; mas que devia fazer com o que estava montado no cavalo? Não queria botá-lo para baixo com receio que despertasse e fizesse um escarcéu. Finalmente, descobriu um expediente: desafivelou a correia que prendia a sela, passou umas cordas nas argolas que havia nas traves, prendeu a sela com o cavaleiro montado e sus- pendeu-a, depois amarrou firmemente as cordas num pau. Feito isto, foi facílimo subtrair o cavalo; mas para sair montado, o barulho das ferraduras poderia chamar a atenção, então enrolou alguns trapos nos cascos do cavalo, levou-o para fora da cocheira e, montando nele, disparou a todo galope.Na manhã do dia seguinte, o ladrão dirigiu-se a rédeas soltas para o castelo, todo pimpão no cavalo roubado. O conde acabava de levantar-se e estava à janela.- Muito bom dia! - gritou de baixo o ladrão. - Eis aqui o cavalo, que tirei com a maior facilidade da cavalariça. Ide ver como dormem os vossos soldadas, como bem-aventurados estão lá deitados no chão, e podeis ver, também, na cavalariça como se acomodaram os vossos guardas!O conde não pôde conter-se e, dando uma risada, disse:- Da primeira vez te saíste bem, mas na segunda não te será tão fácil. A divirto-te, entretanto, que, se te apanho como um ladrão qualquer, trato-te como tal.A noite, quando marido e mulher foram deitar-se, a condessa fechou a mão bem apertada, segurando firmemente a aliança, e o conde disse-lhe:- As portas estão todas trancadas; eu ficarei acordado e, se o ladrão tentar entrar pela janela, dou-lhe um tiro.Entretanto, em meio às trevas da noite, o ladrão foi ao local das forcas, cortou a corda de um pobre enforcado e carregou-o às costas até ao castelo. Em seguida, colocou uma escada sob a janela do quarto e, com o morto sentado sobre os ombros, foi subindo. Ao chegar à altura em que a cabeça do morto aparecia na janela, parou. O conde, que da cama estava espreitando, apertou o gatilho e deu-lhe um tiro; o ladrão soltou, imediatamente, o defunto, pulou da escada e correu a esconder-se num canto. A noite estava tão claramente iluminada pelo luar que o mestre pôde ver, perfeitamente, o conde saindo pela janela; depois desceu pela escada e levou o morto até ao jardim. Uma vez lá, deu-se ao trabalho de abrir uma cova para o enterrar.- Agora é o momento azado! - disse de si para si o ladrão.Deslizou, mais que depressa, do esconderijo, trepou pela escada e foi direitinho ao quarto da condessa.- Minha cara mulher, - disse ele imitando a voz do conde: - O ladrão está morto, mas de qualquer maneira era meu afilhado, mais velhaco do que malvado. Portanto, não quero expô-lo à vergonha pública, mesmo porque tenho pena daqueles pobres pais; vou enterrá-lo, eu mesmo, no jardim, antes que amanheça, para que ninguém venha a saber de coisa alguma. Dá-me o lençol para amortalhá-lo, assim não será enterrado como um cão.A condessa entregou-lhe o lençol.- E, sabes? - prosseguiu o ladrão - terei para com ele um rasgo de generosidade; dá-me, também, tua aliança, afinal de contas esse infeliz arriscou a vida por causa dela; que a leve consigo para a sepultura.A condessa, embora a contragosto, não quis opor-se à vontade do conde e, tirando o anel do dedo, entregou-lho. O ladrão, tendo em poder as duas coisas, tornou a sair pela janela e chegou a casa sem inconvenientes, antes que o conde tivesse terminado o trabalho de coveiro no jardim.Imagine-se, agora, que cara fez o conde na manhã seguinte, quando o mestre ladrão apareceu levando-lhe o lençol e a aliança!- Possuis acaso a varinha mágica? - perguntou-lhe; - quem te desenterrou da cova onde com minhas próprias mãos te coloquei? Quem foi que te ressuscitou?Rindo-se, o ladrão respondeu:- Não foi a mim que enterraste! Foi àquele infeliz que estava na forca. E narrou, detalhadamente, como se passaram as coisas. O conde teve que admitir que era um ladrão hábil e inteligente.- Mas não terminaste ainda, - disse-lhe; - falta levares a cabo o terceiro empreendimento; se nesse não tiveres êxito, tudo o mais não te valerá de nada.O ladrão sorriu e não respondeu nada.Quando caiu a noite, dirigiu-se à igreja da aldeia, levando um comprido saco nas costas, um embrulho debaixo do braço e uma lanterna na mão. Dentro do saco havia uma porção de caranguejos e, no embrulho, outras tantas velinhas de cera. Penetrou no cemitério junto à igreja, sentou-se no chão, pegou um caranguejo e gradou-lhe uma velinha nas costas; acendeu-a e soltou o bichinho. Fez o mesmo com outros e continuou assim até acabar com todos os que estavam no saco. Em seguida, vestiu uma túnica preta, parecida com burel de frade, grudou longa barba branca no queixo e ficou completamente irreconhecível. Depois, pegou o saco no qual trouxera os caranguejos, encaminhou-se para a igreja e subiu no púlpito. O relógio da torre acabava justamente de bater o último toque das doze horas; então ele gritou com voz tronitroante:- Ouvi-me, pecadores! Chegou o fim de todas as coisas; o dia do Juízo está próximo! Ouvi! Ouvi! Quem quiser subir comigo para o céu, entre neste saco! Eu sou São Pedro, o que abre e fecha as portas do céu; olhai lá fora, no cemitério, os mortos já estão recolhendo seus ossos. Vinde! Vinde depressa! Entrai neste saco! Chegou o fim do mundo!Aqueles brados repercutiram por toda a aldeia. O padre e o sacristão, que moravam mais perto da igreja, foram os primeiros a ouvir o estranho apelo; e, quando viram todas aquelas luzinhas caminhando pelo cemitério, convenceram-se de que algo de extraordinário estava sucedendo e foram correndo para a igreja. Durante alguns momentos, ficaram escutando o sermão, depois o sacristão deu uma cotovelada no padre o disse:- Não seria nada mau se aproveitássemos a oportunidade e juntos fôssemos, confortavelmente, para o céu, antes que chegue o dia do Juízo!- Naturalmente, - respondeu o padre, - também penso assim; se estás disposto, ponhamo-nos a caminho.- Sim, - disse o sacristão, - mas vós, reverendo, tendes direito de precedência; eu vos seguirei.Assim o padre foi o primeiro a subir até ao púlpito, onde o ladrão o acondicionou dentro do saco; em seguida foi a vez do sacristão. O mestre, mais que depressa, amarrou fortemente a boca do saco e arrastou-o pela escada do púlpito abaixo; cada vez que as cabeças dos dois malucos batiam nos degraus, ele gritava:- Agora estamos atravessando as montanhas.Dessa maneira levou-os através da aldeia e, quandopassavam dentro de alguma poça d'água, ele gritava:- Agora atravessamos as nuvens molhadas.Finalmente, quando iam subindo a escadaria do castelo, dizia:- Agora estamos subindo as escadas do Céu, em breve chegaremos ao vestíbulo.Chegando lá em cima, ele empurrou o saco para dentro do pombal e, quando as pombas assustadas começaram a bater as asas, disse:- Estais ouvindo como os anjos se alegram e batem as asas de contentamento?Então, puxou o trinco da porta e foi-se embora.Na manhã seguinte, apresentou-se ao conde e comunicou-lhe que se havia desincumbido, também, do terceiro empreendimento e rapatara da igreja o padre com o sacristão.- Onde os puseste? - perguntou meio incrédulo o conde.- Estão dentro de um saco, lá no pombal, e julgam que estão no céu!O conde, foi pessoalmente, verificar e convenceu-se de que o outro dissera a verdade. Libertou o padre e o sacristão e depois disse ao mestre:- Tu és um super-ladrão e ganhaste a tua causa. Por esta vez, escapas com a pele inteira, mas trata de sumir das minhas terras; e, se te mostrares outras vez por aqui, podes contar que serás dependurado na forca.O mestre ladrão, foi despedir-se dos pais e voltou a correr mundo; nunca mais ouviu-se falar nele.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O ouriço do mar

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Era uma vez uma princesa que morava num castelo, no qual havia uma torre altíssima e, sob as ameias que a coroavam, havia uma sala com doze janelas que dominavam todo o horizonte.Quando a princesa subia até lá e olhava à sua volta, abraçava com o olhar todo o seu reino. Da primeira janela, enxergava mais do que os outros, da segunda um pouco mais, da terceira, com maior nitidez ainda e, assim por diante, até à décima segunda, da qual via tudo o que existia sobre a terra e debaixo dela; e nada, nada lhe ficava oculto.A princesa era, porém muito orgulhosa e não queria submeter-se a ninguém; queria reinar sozinha. Portanto, um dia, publicou um edito, anunciando que só se casaria com o homem que conseguisse esconder-se tão bem que lhe fosse impossível descobri-lo. Se alguém, no entanto, aceitasse a prova e fosse descoberto, ser-lhe-la decepada a cabeça, a qual sertã exposta num varapau.Em frente do castelo já havia noventa e sete vate paus exibindo noventa e sete cabeças espetadas. Por isso passou multo tempo sem que se apresentasse mais um pretendente. A princesa estava satisfeita e pensava: "Assim viverei livre e feliz o resto da minha vida!"Eis que, um belo dia, apresentaram-se três irmane dizendo que desejavam tentar a sorte.O mais velho achou que estaria bem seguro escondendo-se dentro de uma caieira, mas ela o descobriu logo da primeira janela, mandou que o tirassem do esconde rijo o Ihe cortassem a cabeça.O segundo irmão, escondeu-se muito bem dentro da adega do castelo; mas esse também ela descobriu da primeira janela o foi liquidado; sua cabeça foi guarnecer o nonagésimo nono varapau.Então, apresentou-se o mais moço dos três e pediu a princesa que Ihe concedesse um dia de tempo para refletir e, na sua magnanimidade, Ihe fizesse mercê duas vezes se acaso o descobrisse. Se também na terceira vez não obtivesse êxito, a vida não mais lhe interessaria. O moço era tão bonito e suplicou com tanta veemência, que ela cedeu, dizendo:- Concedo-te o que me pedes, mas sei que a sorto não te favorecera.No dia seguinte, o moço refletiu longamente onde se poderia ocultar, mas em vão. Desamado pegou a espingarda e foi caçai. Nisso avistou um corvo esta çando perto, apontou-lhe a espingarda e já ia apertar o gatilho, quando o corvo gritou:- Não atires; en te recompensarei!O moço abaixou a espingarda e continuou a caminhar para a frente; daí a pouco, chegou à beira de um lago e viu um enorme peixe que subira à tona e descansava à superfície da água. Apontou a espingarda e, quando ia atirar, o peixe gritou-lhe:- Não atires; eu te recompensarei!Deixando o peixe mergulhar tranquilamente, o moço prosseguiu o caminho e, logo mais adiante, encontrou uma raposa coxeando de uma perna. Atirou nela mas falhou o tiro; então a raposa disse:- Vem antes tirar-me o espinho que tenho no pé.O moço obedeceu mas, depois, queria matá-la e tirar-lhe o couro. A raposa então falou:- Deixa disso! Verás como te recompensarei!O rapaz deixou-a em paz e, sendo já tarde, regressou a casa.No dia seguinte, ele tinha de ocultar-se; porém, por mais que quebrasse a cabeça, não atinava com um lugar adequado. Foi dar uma volta pela floresta e lá encontrou o corvo.- Poupei-te a vida, - disse-lhe, - agora tens de me ensinar onde posso me ocultar para que a princesa não me descubra.O corvo inclinou a cabeça e meditou um certo tempo, por fim crocitou:- Achei!Pegou um ovo do ninho, partiu-o pelo meio e fechou dentro o rapaz; em seguida tornou a grudar bem a casca, recolocou-o no ninho e acocorou-se em cima.Quando a princesa se debruçou na primeira janela, não conseguiu descobrir o moço, e não o conseguiu nem nas janelas seguintes; já começava a desesperar quando, da undécima janela o descobriu. Mandou matar o corvo e apanhar o ovo; depois partiu-o e fez sair o moço, dizendo-lhe:- Por esta vez faço-te mercê; mas, se na próxima, não fizeres coisa melhor, estás perdido.No outro dia, o moço foi até à beira do lago, chamou o peixe e disse-lhe:- Eu te poupei a vida; agora tens que me ensinar onde devo me ocultar para que a princesa não me descubra.O peixe pensou um pouco e depois disse:- Achei! Vou te esconder dentro do meu ventre!Engoliu o moço, inteirinho, e mergulhou para o fundo do lago.A princesa debruçou-se nas janelas e chegou até à undécima sem descobri-lo; já começava a desesperar quando, finalmente, o avistou da décima segunda. Então, mandou apanhar o peixe e arrancar o jovem do seu ventre.Qualquer um pode muito bem imaginar com que cara ele ficou! Ela, porém, disse-lhe:- Pela segunda vez terás mercê, mas tua cabeça está destinada a figurar no centésimo varapau.Chegando o último dia da prova, o rapaz ia andando pelo campo com o coração oprimido e, de repente, encontrou-se com a raposa.- Tu, que sabes descobrir todos os recantos para te enfiares, ajuda-me. Eu te poupei a vida, agora aconselha-me onde devo esconder-me para que a princesa não possa me descobrir.- Não é assim tão fácil! - respondeu a raposa e quedou-se pensativa; por fim exclamou:- Achei!Conduziu o rapaz até à beira de uma fonte, mergulhou dentro dela e saiu transformada em vendedor ambulante. O jovem teve de fazer o mesmo: mergulhou na fonte e saiu transformado em ouriço do mar.O vendedor ambulante foi para a cidade, exibindo o gracioso animalzinho. Toda a gente corria para vê-lo até mesmo a princesa, que ficou gostando tanto dele e o comprou, pagando-o regiamente. Antes de entregar à princesa o bichinho, o vendedor sussurrou-lhe rapidamente:- Quando a princesa se debruçar à janela, enfia-te no meio das suas tranças.E chegou a hora da princesa sair à janela para descobrir o rapaz; foi passando de uma para outra até à undécima e nada viu. Chegando à duodécima, também não o descobriu; então, alarmada, furiosa mesmo, ela bateu a janela com tal violência que os vidros das doze janelas caíram em mil pedaços e o castelo inteiro estremeceu.Voltou desesperada sobre os seus passos para sair da torre e nisso sentiu o bichinho emaranhado no seu cabelo; na sua raiva, agarrou-o e atirou-o ao chão, gritando:- Vai-te, desaparece da minha frente!O bichinho saiu correndo e foi ter com o vendedor ambulante e os dois mergulharam novamente na fonte, retomando seus verdadeiros aspectos. O rapaz agradeceu muito o serviço prestado pela raposa e disse:- O corvo e o peixe são nulidades, comparados contigo; só tu possues verdadeiramente a arte da malícia, é preciso que se diga!Em seguida, dirigiu-se ao castelo. A princesa já o esperava, resignada ao seu destino. Pouco depois realizaram-se as bodas e ele passou a ser o rei e senhor de todo aquele reino.Jamais contou à princesa onde se havia escondido na terceira vez, nem quem o havia auxiliado. Assim ela ficou pensando que ele fizera tudo graças à sua própria sabedoria, e respeitava-o muito, pensando sempre:- "Este é mais sabido do que tu!"Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

As migalhas sobre a mesa

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Certa vez, disse o galo às galinhas:- Vamos lá em cima, na sala, comer as migalhas de pão que estão sobre a mesa; a patroa saiu para fazer uma visita!As galinhas responderam:- Não, não, nós não iremos; a patroa vai ficar zangada conosco.O galo retrucou:- Ela não saberá coisa alguma, vamos sem susto. Afinal de contas, ela nunca nos dá alimento melhor!As galinhas replicaram:- Não, não, ela anda aí por fora, é melhor não irmos.Mas o galo não as deixou em paz; tanto disse e tanto fez, que as galinhas foram bicar as migalhas sobre a mesa.Eis que, no melhor da festa, chegou a patroa. Vendo aquilo, pegou num pau e enxotou o bando a pauladas, castigando todas sem piedade.Quando voltaram para o terreiro, as pobres galinhas disseram ao galo:- Viste, viste, viste, viste o que aconteceu?O galo caiu na gargalhada e respondeu:- Ah, ah, ah, então eu não o sabia!Com isso, foram-se todos ciscar mais para longe.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O camponês e o diabo

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, um camponezinho, esperto e astuto como só ele. Das peças que pregava, poder-se-ia contar muita coisa, mas a história mais engraçada é a de como chegou a lograr o Diabo, iludindo-o.Um dia, o camponesinho acabara de semear o campo e, sendo já noite, dispunha-se a voltar para casa, quando viu no meio do campo um monte de brasas acesas; muito admirado chegou perto e eis que viu, sentado bem em cima das brasas, um diabinho preto.- Estarás por acaso sentado sobre algum tesouro? - disse o camponês.- Naturalmente! - respondeu o diabo: - sobre um tesouro que contém mais ouro e prata do que jamais viste em toda a tua vida.- O tesouro acha-se no meu campo, portanto me pertence! - disse o camponês.- Sim, - respondeu o diabo - mas só será teu se durante dois anos me entregares a metade do que produzir o teu campo. Dinheiro tenho de sobra, agora desejo os frutos da terra.O camponesinho fechou negócio na hora.- A fim de evitar qualquer dissenção que possa surgir na hora da partilha, - disse ele, - fica estabelecido, desde já, que a ti pertencerá o que houver em cima da terra e a mim o que houver por baixo.O diabo concordou. O esperto camponês só havia semeado nabos, portanto, quando chegou a época da colheita, apareceu o diabo querendo levar a sua parte e só encontrou as folhas amarelecidas e murchas. O camponês, porém, todo contente, arrancava da terra belos nabos.- Desta vez saíste ganhando, - disse o diabo, - mas da próxima vez não será assim. Teu será o que crescer sobre a terra e meu o que houver em baixo.- Perfeitamente! - respondeu o camponesinho.Mas, quando chegou a época da semeadura, não semeou nabos e sim trigo.A seara amadureceu e o camponesinho foi ao campo ceifar as ricas e estufadas espigas. E, quando o diabo foi reclamar a sua parte, só encontrou restolhos. Então, louco de raiva pelo logro, atirou-se num precipício.- É assim que se logram os espertalhões! - disse o camponesinho, e, muito feliz, foi cavar o tesouro enterrado no seu campo.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O fuso, a lançadeira e a agulha

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, una moça que perdera os pais ainda criancinha. Sua madrinha, que era muito boa, morava sozinha em pequena casa humilde, na extremidade da aldeia, e lá passava a vida fiando, tecendo e cosendo. A velha trouxe para junto de si a pobre criança abandonada; ensinou-a a trabalhar e educou-a para viver piedosamente no santo temor de Deus.Quando a jovem chegou aos quinze anos, a madrinha caiu doente e, chamando-a junto da cama, disse-lhe:- Minha querida filha, sinto o meu fim aproximar-se; deixo-te a casinha, que te abrigará do vento e da chuva. Deixo-te, também, o meu fuso, a minha lançadeira e a minha agulha a fim de que possas ganhar honestamente o pão de cada dia.Depois, colocou-lhe a mão sobre a cabeça e abençoou-a, dizendo:- Conserva sempre Deus no teu coração, e serás feliz.Em seguida, fecharam-se-lhe os olhos; quando a levaram para o cemitério, a afilhada acompanhou o féretro e, debulhada em lágrimas, prestou-lhe as últimas homenagens.Desde esse dia, a moça viveu sozinha na pequena casa, dedicando-se a fiar, a tecer e a coser com grande desvelo; todo o seu trabalho tinha as bênçãos da boa velha.Dir-se-ia que o linho se multiplicava em casa e, à medida que. tecia uma peça de pano ou um tapete, ou então, que fazia uma camisa, logo se apresentava um comprador, que as pagava generosamente; de modo que ela, não só estava livre de preocupações, mas ainda podia ajudar os pobres.Por esse tempo, o filho do rei percorria o país à procura da esposa que lhe. conviesse. Não podia escolher uma pobre e não queria uma rica.- Casar-me-ei com aquela que for, ao mesmo tempo, a mais pobre e a mais rica, - dizia ele.Chegando, casualmente, à aldeia em que habitava a moça, perguntou aos moradores, como fazia habitualmente, quem era a moça mais pobre e a mais rica do lugar.Em primeiro lugar, designaram-lhe a mais rica; quanto à mais pobre, era a jovem que habitava na casinha isolada, no extremo da aldeia.Quando o príncipe passou pela rua principal, a mais rica estava sentada à porta de sua residência, muito bem vestida e adornada; assim que o viu aproximar-se, foi- lhe ao encontro, fazendo uma graciosa reverência.O príncipe olhou para ela, fez uma inclinação de cabeça e, sem dizer palavra, continuou o caminho. Chegou à casa da jovem pobre; esta não estava à porta para ver o príncipe mas sim dentro de sua casinha. O filho do rei fez deter o cavalo e, através da janela cheia de sol, viu a moça sentada diante da roca, fiando ativamente.Ela ergueu os olhos e, ao perceber o príncipe olhando para dentro da casa, enrubesceu vivamente, e baixando os olhos muito confusa, continuou a trabalhar. Não é possível saber-se se o fio dessa vez saiu bem igual, mas ela continuou assim mesmo, até que o príncipe se afastou.Assim que ele se foi, correu a abrir a janela, murmurando: Como faz calor nesta sala!" e seguiu com o olhar enquanto pôde lobrigar as plumas brancas do seu chapéu.Depois, voltou novamente para o seu lugar e continuou a fiar. Nisto, veio-lhe à memória o estribilho de uma canção que a velha às vezes cantava quando estava trabalhando, e ela pôs-se a cantá-la a meia-vos:
Fuso, meu fuso, anda apressado,Traze para casa o bem-amado...
E o que sucedeu? Imediatamente o fuso saltou-lhe das mãos e saiu para a rua. Ela ergueu-se estupefata e seguiu-o com a vista; viu que ele corria pelos campos, dançando alegremente, deixando atrás de si um reluzente fio de ouro. A moça não tardou a perdê-lo de vista e, não tendo mais o fuso, ela pegou na lançadeira e se pôs a tecer.O fuso, sempre bailando, continuou a corrida sempre para mais longe e, justamente quando o fio estava a acabar, ele alcançou o príncipe.- O que vejo?! - exclamou o príncipe admirado. - Certamente este fuso quer-me conduzir a algum lugar!Voltou o cavalo e seguiu o fio de ouro.Entretanto, a moça continuava o trabalho e cantava:
Tece, minha lançadeira, a roupa fininha,e traze meu bem amado a esta casinha...
Imediatamente a lançadeira fugiu-lhe das mãos e saiu pela porta. Mas, no limiar desta, começou a tecer um tapete tão fino e maravilhoso como nunca se vira igual no mundo.As barras eram bordadas de rosas e lírios e, ao centro, num fundo de ouro, destacavam-se pâmpanos verdes, entre os quais pulavam lebres, coelhos, veados e cabritos monteses entremostrando a cabeça. No alto dos galhos, empoleiravam-se aves multicores, às quais só faltava cantar. A lançadeira continuava a correr de lá para cá e a obra avançava maravilhosamente.Como lhe tinha fugido a lançadeira, a moça pôs-se a coser; tinha a agulha na mão e principiou a cantar:
Agulha, linda agulhinha,Para o bem amado, arruma a casinha...
Mal o disse, a agulha escapou-lhe dos dedos e saiu a correr pela casa, veloz como um raio.E era como se estivessem a trabalhar inúmeros espíritos invisíveis; a casa ficou logo arrumadinha; a mesa e os bancos cobriram-se de belos panos verdes; as cadeiras cobriram-se de veludo e nas janelas pendiam cortinas de seda.Logo que a agulha deu o último ponto, a moça avistou pela janela as brancas plumas do príncipe, conduzido até ai pelo fio de ouro. Ele entrou na casa, passando sobre o tapete e, ao entrar na sala, viu a jovem vestida com pobres trajes, mas tão fulgurante como uma rosa na roseira.- Tu és, realmente, a mais pobre e a mais rica! - disse-lhe o príncipe; - vem comigo e serás minha esposa.Sem dizer nada ela estendeu-lhe a mão gentilmente. Ele então, curvou-se e beijou-a. Depois fê-la montar à garupa do cavalo e levou-a para o castelo, onde se celebraram as núpcias com grande brilho e esplendor.O fuso, a lançadeira e a agulha, foram preciosamente conservados no tesouro real e tratados com todas as honras.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A lebre e o ouriço

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Esta história, meninos, vai parecer-vos mentirosa, contudo é verdadeira; contava-ma sempre o meu avô, que costumava dizer, toda a vez que a contava, com muita seriedade.- Deve ser verdade, meu filho, do contrário não se poderia contá-la.E os fatos que ele narrava são os seguintes:Numa bela manhã de domingo, em pleno verão, precisamente quando as espigas estavam todas floridas, o sol brilhava no céu azul, a brisa matutina fazia ondular as searas, as cotovias cantavam pelo espaço, as abelhas zumbiam entre as espigas, o povo, em roupas domingueiras, se dirigia à igreja. Todas as criaturas estavam alegres e, assim também, o ouriço.O ouriço estava diante da porta da casa, de braços cruzados; parado e absorto observava o ar límpido da manhã e trauteava uma cançãozinha nem melhor nem pior do que costumava cantar um ouriço numa bela manhã de domingo.Enquanto ele assim cantava, ocorreu-lhe, repentinamente, que, como sua mulher estava lavando e vestindo os filhos, ele podia dar um passeiozinho no campo para ver como estavam os nabos. Os nabos cresciam num campo bem próximo de casa e ele costumava ir com a família comê-los, por isso considerava-os como seus.Dito e feito. O ouriço fechou a porta atrás de si e encaminhou-se para o campo.Não se distanciara muito da casa e, justamente, ia contornar a ameixeira em frente ao campo, quando encontrou a lebre que saía com idênticas intenções, isto é, com o fito de visitar os repolhos.Assim que avistou a lebre, o ouriço deu-lhe amavelmente os bons-dias.Mas a lebre, que se dava ares de importância, julgando-se uma fidalga, era tremendamente presunçosa; não correspondeu ao cumprimento e disse-lhe com um muxoxo de altivo desdém:- Como é que tão cedo já percorres o campo?- Vim dar um passeio, - disse o ouriço.- Um passeio! - replicou zombeteira a lebre. Parece-me que poderias empregar as pernas para coisa melhor.Tal resposta ofendeu profundamente o ouriço, o qual tolerava tudo, mas não admitia que falassem de suas pernas, porque as tinha tortas por natureza.- Imaginas, porventura, - retorquiu ele azedo - que tuas pernas valem mais do que as minhas?- Tenho certeza que sim! - respondeu a lebre.- Pois vamos pôr isso à prova, - disse o ouriço, - aposto que, se fizéssemos uma corrida, eu sairia vencedor.- Fazes-me rir; com essas tuas pernas tortas! - disse a lebre. Mas se o queres, se tens tanta vontade, assim seja. Quanto vale a aposta?- Uma moeda de ouro e uma garrafa de aguardente, - respondeu o ouriço.- Aceito! - respondeu a lebre - e podemos fazer a prova imediatamente.- Não; não há tanta pressa assim! - disse o ouriço. - Eu ainda estou em jejum, vou primeiro até em casa comer alguma coisa e, dentro de meia hora, estarei de volta.A lebre concordou e o ouriço afastou-se. No caminho, dizia de si para si: "A lebre fia-se nas suas longas pernas mas há de se haver comigo! É na verdade muito distinta, mas não passa de uma estúpida; vai receber uma boa lição."Ao chegar a casa, disse à sua mulher:- Mulher, veste-te depressa; precisas vir comigo ao campo.- O que sucedeu? - perguntou a mulher.- Apostei com a lebre uma moeda de ouro e uma garrafa de aguardente: vamos fazer uma corrida e tu tens de me ajudar.- Oh, meu Deus! - pôs-se a censurar a mulher, - Oh, homem, tu certamente perdeste a cabeça; estás louco? Como podes apostar corrida com a lebre?- Cala-te, mulher, - disse o ouriço; - isso é comigo. Não metas o bedelho em negócios de homens. Veste-te e anda comigo!Que podia fazer a mulher do ouriço? Teve de obedecer; quisesse-o ou não.Puseram-se, juntos, a caminho e, então, disse o ouriço:- Presta atenção ao que te vou dizer. Nós vamos correr naquele campo comprido. A lebre corre num sulco e eu noutro; partiremos de lá de cima. Tu não tens mais do que esconder-te no sulco aqui em baixo, e, quando a lebre chegar pelo outro sulco, na mesma direção, tu lhe gritarás: Já estou aqui!Com isso, chegaram ao ponto marcado; o ouriço indicou à mulher o lugar em que se havia de esconder no sulco e subiu o campo. Quando chegou ao extremo deste, já lá encontrou a lebre.- Podemos começar? - perguntou ela.- Sem dúvida, - respondeu o ouriço.- Então, a caminho!E cada qual foi para o seu sulco. A lebre contou: Um, dois, três! e partiu como um relâmpago. O ouriço correu mais ou menos três passos, depois agachou-se no sulco e ficou quietinho.Quando a lebre, em longas pernadas, chegou à outra extremidade do campo, a mulher do ouriço gritou-lhe:- Já estou aqui!A lebre, surpreendida e admirada, julgou ser o ouriço quem gritava, porque, como todos sabem, a mulher parece-se muito com ele. Mas ficou a pensar:- Aqui há coisa! - e gritou:- Corramos outra vez, em sentido inverso!E saiu correndo como um raio, a ponto que as orelhas pareciam prestes a despegarse-lhe da cabeça. Enquanto isso, a mulher do ouriço ficou calmamente onde estava; e quando a lebre atingiu o extremo inicial do campo, o ouriço gritou-lhe:- Já estou aqui!A lebre, completamente fora de si pela raiva, gritou:- Corramos outra vez; volte!- Para mim é o mesmo! - respondeu o ouriço: - podemos continuar enquanto te aprouver.Assim a lebre correu setenta e três vezes e o ouriço sempre ganhou. Sempre que a lebre chegava a uma ou outra extremidade do campo, o ouriço ou a mulher gritavam:- Estou aqui!Mas, à septuagésima quarta vez, a lebre não alcançou a meta. Estrebuchou, no meio do campo, botando sangue pela beca e expirou.O ouriço pegou a moeda de ouro e a garrafa de aguardente que ganhara com a sua astúcia. Chamou a mulher para que saísse do sulco e voltaram ambos para casa muito satisfeitos. Se não morreram, certamente ainda estão vivos.E assim foi que, no campo de nabos, o ouriço apostou corrida com a lebre e saiu vencedor; e, desde esse dia, nenhuma lebre quis jamais apostar com um ouriço.A moral desta história é, em primeiro lugar, que ninguém, por mais importante que seja, deve permitir- se zombar de quem quer que seja, nem mesmo de um ouriço.Em segundo lugar, ainda mais acertado quem se casa com pessoa de sua condição, que se assemelhe.Portanto, quando se tratar de um ouriço, deve ter todo o cuidado em que a futura mulher seja uma ouriça, e assim por diante...Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A verdadeira noiva

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Era uma vez uma jovem boa e bela, que havia perdido a mãe quando era ainda pequenina, e agora a madrasta torturava-a, impiedosamente, de mil maneiras.Quando a madrasta a mandava fazer algum serviço, por mais árduo que fosse, a jovem empenhava-se com o maior zelo e fazia o máximo que podia. Contudo, não conseguia abrandar o coração daquela perversa mulher, sempre insatisfeita e descontente. Quanto maior era o seu desvelo, tanto mais trabalho lhe era imposto; e a madrasta não pensava em outra coisa, senão em sobrecarregá-la cada vez mais de trabalho, com o propósito de tornar-lhe a vida impossível. Certo dia, disse-lhe:- Aqui estão doze quilos de penas; tens de desfiá-las todas, mas se não terminares até à noite, espera-te uma boa carga de pancadas. Pensas acaso que podes vadiar o dia inteiro?A pobre moça sentou-se para executar a tarefa, mas as lágrimas escorriam-lhe pelas faces, pois ela bem via que era humanamente impossível terminar o trabalho num só dia. Quando já tinha desfiado um montinho de penas, deu um suspiro doloroso, certa de não escapar às pancadas, e as plumas voaram para todos os lados. Ela teve de recolhê-las e recomeçar o ingrato trabalho. Chegou um momento em que ficou tão desesperada que apoiou os cotovelos na mesa, escondeu o rosto entre as mãos e pôs-se a soluçar alto:- Não haverá mesmo ninguém neste mundo de Deus que tenha pena de mim?Então, ouviu uma voz dizer-lhe:- Consola-te, minha menina, aqui estou para ajudar-te.A moça ergueu os olhos e deparou com uma velha de pé ao seu lado, a qual lhe pegou a mão carinhosamente e disse:- Confia-me as tuas angústias!A velha falava tão carinhosamente, que a moça se animou a contar-lhe a sua vida cheia de amarguras, dizendo que lhe impunham trabalho e mais trabalho e que nunca chegava ao fim de tantas tarefas.- Hoje mesmo, se eu não terminar antes da noite de desfiar estas penas, minha madrasta me espancará, conforme ameaçou; e sei que ela cumpre a palavra.As lágrimas tornaram a escorrer abundantes, mas a velha disse-lhe:- Não to aflijas assim, minha menina, procura descansar um pouco; enquanto isso eu farei o teu trabalho.A moça deitou-se na cama e daí a pouco adormeceu. A velha sentou, no lugar dela, diante do monte de penas; e era de ver com que agilidade destacava a plumagem dos canudinhos, que ela mal tocava com as mãos delgadas! Num abrir e fechar de olhos, os doze quilos de penas foram completamente desfiados.Quando a jovem acordou, viu grandes montes de níveas plumas bem amontoadas e o quarto limpinho e ordenado; mas a boa velha tinha desaparecido.A moça elevou uma prece de agradecimento a Deus e ficou, tranquilamente, no quarto até a noite. A madrasta chegou e, vendo que ela havia acabado a tarefa, admirou-se muito e disse:- Vês, moleirona, quanto se pode fazer, quando se trabalha com vontade? Não podias ter feito qualquer outra coisa quando terminaste, ao invés de ficar aí sentada com as mãos no regaço?Ao sair do quarto, a madrasta murmurou para si mesma: "Essa criatura sabe fazer algo mais que comer pão; é preciso que lhe imponha tarefas mais difíceis."Na manhã seguinte, chamou a moça e ordenou-lhe:- Aqui tens uma colher; exijo que tires com ela toda a água do grande lago que há perto do jardim. Se até ao anoitecer não tiveres terminado, deixando o lago bem seco, já sabes o que te espera.A moça pegou na colher e observou que estava furada; mesmo, porém, que não o estivesse, jamais conseguiria esgotar o grande lago com ela. Contudo, entregou-se à tarefa com afinco; ajoelhada á beira do lagochorava tanto que suas lágrimas rolavam dentro da água. Mas a boa velha tornou aparecer e, ao tomar conhecimento do que lhe causava tamanha aflição, disse-lhe:- Não chores, minha menina; vai aí no meio desse bosque e dorme um pouco; entretanto, eu farei o teu trabalho.Assim que a velha ficou só, bastou-lhe tocar de leve com a mão no lago e logo a água se evaporou e, subindo para o ar, foi misturar-se com as nuvens. Pouco a pouco, o lago foi secando e, antes do crepúsculo, quando a moça acordou, só se viam peixinhos debatendo-se no lodo. Então ela foi ter com a madrasta e comunicou-lhe que o trabalho estava concluído.- Devia estar terminado há muito mais tempo! - bradou ela, pálida de raiva. E pôs-se a cogitar algo mais difícil ainda.Na manhã do terceiro dia, chamou a moça e disse-lhe:- Tens de me construir um lindo castelo naquela planície lá em baixo; e quero que fique pronto para hoje à noite.A moça estremeceu de espanto e disse:- Como é possível executar uma obra desse vulto?- Não admito que me contradigas! - bradou a madrasta; - se tens capacidade para esvaziar um lago com uma colher furada, deves ter capacidade, também, para construir um castelo. Quero mudar-me para ele hoje mesmo; e se faltar a menor coisa, quer na cozinha, quer na adega, já sabes o que te espera.Dizendo isto, empurrou a moça para fora. Esta dirigiu-se para o vale próximo, onde havia grande número de pedras amontoadas; mas, mesmo empregando o máximo de força, não conseguia remover nenhuma. Desesperada, sentou-se e desatou a chorar; mas no íntimo, contava com o auxílio da boa velha. Com efeito, esta não se fez esperar muito; surgiu a seu lado e consolou-a dizendo:- Vai deitar-te naquela sombra e dorme um pouco! Eu construirei o castelo. Depois, se quiseres, poderás morar nele.A moça afastou-se; a velha tocou com a mão delgada as pedras e estas, instantaneamente, se deslocaram arrumando-se uma sobre a outra e formando altas paredes, como que manuseadas por inúmeras mãos de gigantes invisíveis, que ali estivessem trabalhando.O solo estremecia e as grandes colunas elevavam-se uma ao lado da outra; sobre o teto, as telhas se alinhavam em perfeita ordem e, quando deu meio-dia, já tremulava no alto da torre a grande flâmula semelhante a uma jovem dourada envolta em roupas esvoaçantes.O interior do castelo, também, ficou pronto antes do anoitecer. Como fez tudo aquilo a velha, é coisa que não sei; o que sei é que as paredes dos aposentos eram recobertas de finas tapeçarias de veludo e seda; cadeiras de estofados bordados de seda multicor; poltronas ricamente estofadas e esculpidas alinhavam-se ao lado de mesas todas de mármore e bronze. Lampadários de cristal pendiam do teto, refletindo-se no pavimento luzidio. Papagaios verdes e lindos pássaros exóticos cantavam, maviosamente, dentro de esplêndidas gaiolas douradas. Via- se por toda parte tal suntuosidade como se lá tivesse que habitar um rei.O sol descambava no horizonte, quando a moça acordou e, ante seu olhar pasmo, resplandecia a cintilação de mil luzes. Dirigiu-se correndo para o castelo cujo portão encontrou aberto, e foi entrando. A escadaria estava toda atapetada de rico tapete vermelho e os balaústres estavam adornados de flores.Ao ver o esplendor que havia em todos os aposentos, ela estacou petrificada, e teria permanecido assim, indefinidamente, se não lhe ocorresse a lembrança da madrasta.- Ah, - suspirou, - se ao menos agora ela ficasse satisfeita e não me atormentasse mais!Foi ter com ela e comunicou-lhe que o castelo estava pronto.- Quero mudar-me imediatamente para lá! - disse a madrasta, levantando-se da cadeira onde estava sentada.Quando entrou no castelo, ao ver aquele esplendor, ficou tão ofuscada que precisou levar a mão aos olhos.- Viste, - disse ela à jovem, - como te foi fácil construí-lo? Eu deveria ter-te dado tarefa mais difícil.Percorreu todos os aposentos e meteu o nariz em toda parte, esmiuçando tudo para ver se faltava alguma coisa, ou se descobria a menor falha; mas não descobriu nada.- Agora vamos descer à adega, - disse ela fitando a jovem com olhar maldoso, - quero ver com os meus olhos se na adega e na cozinha não falta coisa alguma; se esqueceste a menor coisa, não escaparás ao castigo que te espera. - E foram à cozinha.Mas no fogão as chamas crepitavam alegremente, cozendo os alimentos nas panelas; ao lado, estavam as pinças e as tenazes de arrumar os tições; nas paredes, brilhavam como ouro as vasilhas de cobre; enfim, não faltava mesmo nada. Até o caixote para o carvão estava no lugar, assim como o balde para a água.- Por onde é que se desce à adega? - grunhiu ela; - se não estiver suficientemente provida de barris cheios do melhor vinho, pobre de ti!Ela mesma abriu a porta do alçapão e começou a descer a escada, mas, apenas desceu dois degraus, a pesada porta, mal e mal encostada, caiu sobre ela. A moça ouviu um grito horrível; correu depressa a abrir o alçapão para socorrer a madrasta, mas esta rolara pela escada abaixo e jazia morta lá no fim da escada.Agora aquele suntuoso castelo pertencia exclusivamente à moça. Nos primeiros dias, foi-lhe difícil habituar-se àquele fausto e a tanta felicidade.Os armários estavam atulhados de belíssimos vestidos; as arcas vergavam ao peso do ouro e prata; algumas delas estavam abarrotadas de lindíssimas pedras preciosa e pérolas; não havia desejo seu que não fosse imediatamente satisfeito.Não tardou a espalhar-se pelo mundo a fama de sua beleza e imensa riqueza; logo começaram a desfilar os pretendentes vindos de toda parte, mas nenhum conseguira agradar-lhe.Por fim apresentou-se, também, o filho de um rei muito poderoso; este soube tocar-lhe o coração e ela tornou-se sua noiva.No jardim do castelo, havia um bolo pé do tília; e, certo dia, estando os noivos sentados à sua sombra, conversando sobre o que mais lhes interessava, o príncipe disse:- Preciso voltar para casa e pedir o consentimento de meu pai para o nosso casamento; peço-te que me esperes aqui, debaixo desta tília, pois estarei de volta dentro de poucas horas.A moça beijou-o na face esquerda e disse:- Conserva-te fiel ao nosso amor e não permitas que mulher alguma te beije nesta face. Aqui, sob esta tília, aguardarei teu regresso.E ficou à sombra da tília, esperando. Esperou até depois de o sol se pôr, mas ele não voltou. Durante mais três dias, ela o continuou esperando, desde o alvorecer até ao cair da noite, mas em vão. Finalmente, no quarto dia, vendo que ele não vinha, ela pensou:- Com certeza lhe aconteceu alguma desgraça; irei à sua procura e não voltarei enquanto não o encontrar.Escolheu três vestidos dentre os mais lindos que possuía: um recamado de estreias cintilantes; outro de luas prateadas e o terceiro de sóis de ouro, e fez um embrulho deles. Em seguida, apanhou um punhado de pedras preciosas, amarrou-as num lenço e pôs-se a caminho.Em todos os lugares por onde passava, ela pedia notícias do noivo, mas ninguém o vira e nem sabia nada a seu respeito. Perambulou pelo mundo, percorrendo-o de uma extremidade a outra e nada de encontrá-lo. Por fim, resolveu empregar-se como pastora na casa de um camponês; depois, enterrou os vestidos e pedrarias debaixo de uma pedra.Passou a viver como simples pastorinha, guardando o rebanho, mas sempre tristonha e consumindo-se de saudades do bem-amado.Havia na casa um bezerrinho que se afeiçoara profundamente à moça, a ponto de comer na sua mão; ela, acariciando-o, costumava dizer-lhe:
- Bezerrinho, bezerrinho, ajoelha,não esqueças a lua pastora,como o príncipe esqueceua fiel noiva de outrora!
O bezerrinho, então, ajoelhava-se e ficava a ouvir.Vários anos passou assim, triste e solitário, até que, um dia, espalhou-se na região a notícia de que a filha do rei estava para casar. A estrada larga que conduzia à cidade passava marginando a aldeia onde residia a moça. E aconteceu que o noivo passou por lá, justamente quando ela ia conduzindo o rebanho a pastar.O príncipe passou montado em um cavalo, altivo e indiferente, sem olhar para ela; mas ela, assim que o viu, logo o reconheceu e sentiu como se uma espada lhe traspassasse o coração.- Ah, - suspirou tristemente, - pensei que me tivesse permanecido fiel; ao invés me esqueceu!No dia seguinte, o príncipe tornou a passar. Quando estava perto da moça, esta disse ao bezerrinho:
- Bezerrinho, bezerrinho, ajoelha,não esqueças a lua pastora,como o príncipe esqueceua fiel noiva de outrora.
O bezerrinho, ajoelhado, ficava a ouvir. E o príncipe, ouvindo aquela voz, deteve o cavalo e baixou os olhos; fitou o rosto da pastora, levando a mão diante dos olhos como a recordar alguma coisa; depois continuou o caminho e logo desapareceu.- Ah, - disse ela, - já não me reconhece! - e sua mágoa aumentou ainda mais.Dias depois, no castelo realizava-se uma grande festa que duraria três dias, e para a qual foram convidados todos os habitantes da região.- Vou tentar a última prova! - pensou a moça, e quando caiu a noite, foi buscar os seus tesouros escondidos debaixo da pedra.Escolheu o vestido bordado de sóis de ouro; vestiu- se e adornou-se com as mais belas joias. Soltou os cabelos, que trazia presos sob um lenço e deixou-os cair pelos ombros. Em seguida, encaminhou-se para a cidade e, felizmente, em meio às trevas, ninguém lhe prestou atenção.Quando chegou ao castelo e entrou no salão de festas, profusamente iluminado e cheio de gente, os convidados abriram alas assombrados diante de tanta beleza; mas ninguém sabia quem ela era. O príncipe foi ao seu encontro sem a reconhecer e convidou-a para dançar, e, completamente deslumbrado, esqueceu a outra noiva.Ao terminar a festa, ela desapareceu entre a multidão e correu para a aldeia; chegou antes do amanhecer, tornou a vestir a pobre roupa de pastora e foi cuidar do rebanho.Na noite seguinte, ela vestiu o traje bordado de luas prateadas, adornou os cabelos com um diadema em forma de meia lua, todo de diamantes e, quando surgiu no salão de festas do castelo, todos os olhos voltaram-se para ela cheios de admiração. O príncipe correu-lhe ao encontro e, perdido de amor, só dançou com ela sem dar a mínima atenção a nenhuma outra moça. Quando chegou a hora de partir, ela teve que prometer-lhe que voltaria à festa da última noite.E com efeito, na terceira noite apareceu trajando o vestido recamado de estrelas, que faiscavam ao menor movimento. Nos cabelos e na cintura, trazia uma faixa, também recamada de estrelas e pedrarias cintilantes.O príncipe já a esperava impaciente; ao ver a multidão abrir alas, precipitou-se-lhe ao encontro, cheio de alegria.- Dize-me, enfim, quem és! Parece-me que já te conheci há muito tempo, - disse ele.- Oh, já não te lembras o que fiz e disse quando nos despedimos? - respondeu a moça. E assim dizendo beijou-o na face esquerda, exatamente como havia feito então.No mesmo instante, foi como se uma venda lhe caísse dos olhos e o príncipe reconheceu a sua verdadeira noiva.- Vem, - disse-lhe, - não posso ficar aqui mais tempo!E conduziu-a pela mão até à carruagem que aguardava lá fora. Os cavalos, velozes como o vento, abalaram rumo ao castelo maravilhoso. Desde longe, viam-se brilhar as janelas iluminadas e, quando passaram sob a tília, milhares de pirilampos cintilaram por entre os galhos e a planta amiga exalou o penetrante e suave perfume.Ao longo da escadaria desabrochavam as flores e dos aposentos internos chegava o trinar de pássaros exóticos; no salão estava reunida toda a corte.O sacerdote, também, os esperava e logo a seguir uniu em matrimônio o príncipe à sua verdadeira noiva.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O pobre rapaz na sepultura

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, um rapazinho, filho de um pastor, que ficara órfão de ambos os pais; então, os magistrados confiaram-no à tutela de um homem muito rico, a fim de que o criasse e educasse em sua casa.Mas o ricaço e mulher eram maus de coração e, apesar da grande riqueza, muito mesquinhos e avarentos. Sempre que davam um pedaço de pão a algum necessitado, faziam-no de má vontade e resmungando.Por conseguinte, o pobre rapazinho, embora fizesse o máximo que podia, recebia pouquíssimo alimento e, em compensação, muita pancada.Certo dia, incumbiram-no de cuidar da choca com os pintinhos no campo. Mas a choca e os pintinhos escapuliram por um buraco da cerca; no mesmo instante, passou um gavião e carregou a galinha pelos ares. O rapazinho pôs-se a gritar desesperadamente, com todas as forças:- Ladrão, ladrão! Velhaco!Mas que adiantava gritar? O gavião não devolveu a presa. O ricaço, ouvindo aquela gritaria, correu para ver o que estava acontecendo. Ao saber que perdera a galinha, ficou tão furioso que desandou a surrar o menino, o qual ficou impossibilitado de mover-se durante vários dias.Daí em diante, ele foi incumbido de guardar os pintinhos sem a choca; mas foi muito pior, porque, não tendo a mãe, cada qual fugia por um lado. O menino, então, pensou em fazer coisa acertada e amarrou-os todos juntos com um cordel, a fim de que o gavião não pudesse roubar nenhum.Mas enganou-se redondamente. Passados alguns dias, quando ele, cansado de tanto correr atrás dos pintinhos e extenuado pela fome, deitara-se um pouco e adormecera, surgiu o gavião, justamente nesse momento. Baixando voo, o gavião arrebatou um dos pintinhos mas, como estavam amarrados todos juntos, ao levantar voo, carregou-os um atrás do outro. A terrível ave de rapina pousou numa árvore e, tranquilamente, devorou a enfiada de pintos.Nisso vinha regressando para casa o ricaço e, ao ver aquela nova desgraça, ficou possesso de raiva; espancou brutalmente o menino, que teve de ficar de cama por muitos dias.Uma vez restabelecido, o homem disse-lhe:- Não serves para guardador de galinhas, és demasiadamente tolo; passarás a ser mensageiro.E mandou-o levar um cesto de uvas ao Juiz, juntamente com uma carta.Pelo caminho, o pobre rapazinho, torturado pela fome e pela sede, atreveu-se a comer dois cachos de uva. Chegando ao destino, entregou o cesto e a carta ao Juiz, que leu o que vinha escrito, contou os cachos e disse-lhe:- Estão faltando dois.O rapazinho confessou lealmente que, torturado pela fome e pela sede, os comera no caminho.O Juiz escreveu uma carta ao camponês, exigindo os dois cachos e mais outro tanto do que já recebera. Novamente o rapaz foi incumbido de levar o cesto e outra carta. E, outra vez, compelido pela fome e pela sede, atreveu-se a comer outros dois cachos. Antes, porém, de fazê-lo, tirou a carta do cesto, meteu-a debaixo de uma pedra e sentou-se em cima, para que a carta não visse chupar as uvas e não o traísse. Mas o Juiz pediu-lhe contas dos cachos que faltavam.- Ah, - disse o menino, - quem foi que vos contou? A carta não o poderia saber, pois eu a escondi debaixo de uma pedra.A Juiz não pôde conter o riso ante tamanha ingenuidade e escreveu uma carta ao rico camponês, intimando-o a tratar melhor o rapazinho e não o deixar padecer tanta fome e sede; intimava-o, também, a ensinar-lhe o que era direito e o que não era.- Já te mostro a diferença! - disse o homem cruel:- quem não trabalha não come e, se fizeres algo errado, aprenderás o certo a custa de pancadas.No dia seguinte, incumbiu-o de uma tarefa pesada demais. Ordenou-lhe que cortasse alguns feixes de palha para forragem dos cavalos, ameaçando-o:- Vou sair, mas estarei de volta ao cabo de cinco horas; se não encontrar a palha bem picada, apanhas tanto que não poderás mais nem mexer um dedo.Com isto o camponês com a mulher, o criado e a cozinheira, foram à feira, deixando o rapazinho em casa, apenas com uma côdea de pão para comer. O menino pôs-se, imediatamente, a executar a tarefa; mas, sentindo calor, despiu o paletòzinho e atirou-o sobre o monte de palha. Receando não terminar no prazo marcado, ele ia picando a palha sem olhar para nada e, na sua pressa, cortou inadvertidamente também o paletòzinho. Quando deu pela coisa, era tarde demais e não tinha mais remédio.- Ah, - exclamou desesperado, - agora está tudo acabado para mim! Aquele homem perverso não me ameaçou em vão! Quanto voltar e vir o que fiz, ele me matará de pancadas! Se tenho de morrer, então prefiro matar-me eu mesmo.E lembrou-se que, um dia, a camponesa dissera:- Em baixo da cama, tenho um pote cheio de veneno.Dissera isso, evidentemente, com o fito de manter longe os gulosos, porquanto, na realidade, o pote estava cheio de excelente mel.O rapaz meteu-se debaixo da cama, destapou o pote e engoliu o mel de uma só vez.- Não compreendo, - disse ele, - todos dizem que a morte é amarga! A mim ela parece-me doce. Não é de estranhar que a camponesa viva desejando a morte.Depois sentou-se numa cadeirinha, preparado para morrer. Mas, ao invés de sentir-se mais fraco, sentia-se bem mais fortalecido por aquele alimento reconfortante. "Acho que não era veneno! - monologou. - O camponês disse, uma vez, que no armário tinha guardado uma garrafinha de veneno para matar moscas; esse talvez seja do bom e me fará morrer!"Mas não era veneno nem aquele; era simplesmente um bom vinho da Hungria. O rapazinho pegou a garrafa e bebeu todo o conteúdo. - "Oh, esta morte também é doce!" - exclamou ele. - Logo, porém, o vinho subiu-lhe à cabeça, atordoando-o, e então ele pensou que o fim se aproximava.- Sinto que estou morrendo, - disse; - vou ao cemitério procurar uma sepultura para mim.Saiu cambaleando, chegou ao cemitério e deitou-se dentro de uma cova recém-aberta. Pouco a pouco foi perdendo os sentidos. Nas proximidades do cemitério havia uma estalagem, na qual estavam festejando umas bodas; ao ouvir a música, que provinha de lá, julgou encontrar-se no paraíso; depois, perdeu completamente os sentidos.Quando o camponês soube da morte do menino, ficou horrorizado e receou ser levado perante a Justiça; aliás, foi tão grande o seu pavor, que caiu ao chão desacordado.A mulher, que estava perto do fogo com uma frigideira cheia de gordura na mão, correu para socorrê-lo, mas a gordura pegou fogo e este propagou-se pela casa toda, ficando em poucas horas reduzida a um montão de cinzas.Marido e mulher, então, torturados pelo remorso, passaram os últimos anos da existência na mais negra miséria.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O prego

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, um negociante, que tendo feito excelentes negócios na feira, onde vendera toda a mercadoria e enchera bem as algibeiras de ouro e prata, se dispôs a regressar para casa antes do anoitecer. Montou a cavalo, prendendo bem o alforge cheio de dinheiro e pôs-se a caminho.Ao meio-dia, parou numa cidade para almoçar e já se dispunha a prosseguir, quando o moço das cavalariças lhe trouxe o cavalo, dizendo:- Senhor, está faltando um prego na ferradura da pata esquerda traseira.- Deixa faltar! - respondeu o negociante, - a ferradura aguentará bem as seis horas que me restam a percorrer. Estou com muita pressa e devo ir.A tarde, quando se deteve para alimentar o cavalo, o moço da cavalariça foi ter com ele e disse-lhe:- Senhor, está faltando a ferradura da pata esquerda traseira do cavalo; quereis que o leve ao ferreiro?- Deixa faltar! - respondeu o negociante. - Estou com muita pressa; tenho poucas horas ainda a percorrer, e o cavalo certamente aguentará.Pôs-se a caminho mas, não andou muito, o cavalo começou a mancar. Durante um certo trecho foi mancando, depois começou a tropeçar e, logo mais, deu uma queda e fraturou a perna.Então o negociante viu-se obrigado a deixar o pobre animal lá no chão. Desprendendo o alforge cheio de dinheiro, pô-lo às costas e foi andando até em casa a pé; e só chegou bem tarde da noite.- Tudo por causa de um simples prego! - resmungava ele.Mas a verdade é que a "pressa exige calma."Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

O gigante e o alfaiate

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Era uma vez um alfaiate que era grande fanfarrão, embora muito mau pagador. Certo dia, deu- lhe na telha sair pelo mundo afora. Logo que lhe foi possível, abandonou a oficina, cantarolando alegremente.
Pelo caminho foi andando,pelas pontes foi passando,tivesse ou não tivesse gente,para aqui para acolá,mas sempre para a frente.
Quando saiu do recinto da cidade, avistou ao longe uma montanha pontiaguda e, no seu cume, uma torre tão alta que parecia furar o céu, a qual sobressaia do meio de uma grande floresta virgem.Cáspite! - exclamou o alfaiate, - o que será aquilo?E, espicaçado pela curiosidade, foi correndo naquela direção. Mas ao chegar lá, abriu, imensamente, os olhos e a boca. A torre tinha pernas! E ela transpôs de um salto a montanha abrupta e estacou como enorme gigante diante do alfaiate.- Que vens procurar aqui, mosquitinho? - bradou com uma voz tão estentórea como o retumbar de um trovão. O alfaiate balbuciou trêmulo:- Estou vendo se me é possível ganhar um bocado de pão aí nessa floresta.- Se esse é o teu intento, podes vir desde já trabalhar para mim, - disse o gigante.- Por quê não? Se for necessário irei! Mas qual será meu salário?- Teu salário? - respondeu o gigante, - já o verás! Trezentos e sessenta e cinco dias por ano e mais um dia se o ano for bissexto; serve-te?- Que seja! - respondeu o alfaiate, e pensava consigo mesmo: "Deve-se esticar as pernas conforme o comprimento da coberta. Mas procurarei ver-me livre quanto antes."Então, o gigante disse-lhe:- Vai, velhaquete, e traze-me uma bilha de água.- E por quê não o regato e mais a fonte toda? - perguntou o fanfarrão, e, pegando na bilha, foi buscar água.- O quê? O regato e a fonte toda? - resmungou o gigante por entre as barbas e, como era um tanto estúpido e tolo, ficou alarmado: "aquele malandro é muito sabido, sabe algo mais do que assar maçãs; provavelmente tom mandrágora no corpo. Cuidado, meu velho, esse não é criado para ti!"Quando o alfaiate lhe trouxe a água, o gigante mandou-o cortar algumas achas de lenha, a fim de levá-las para casa.- Por quê não a floresta inteira de uma vez?
A floresta toda inteira,com as árvores velhas e novase tudo o que ela contém.Liso e nodoso também?
perguntou o alfaiate, e foi rachar a lenha.- O quê?
A floresta toda inteira,com as árvores velhas e novase tudo o que ela contém.Liso e nodoso também?
- E mais o regato com a fonte? - resmungou por entre as barbas o crédulo gigante; e seu medo aumentou ainda mais: - "aquele velhaco sabe demais, tem com toda a certeza mandrágora no corpo! Cuidado, meu velho, esse não é bom criado para ti."Quando o alfaiate lhe trouxe a lenha, o gigante mandou-o caçar dois ou três porcos-do-mato para o jantar.- Por quê não mil de uma vez e os demais também, com um só tiro? - perguntou o alfaiate farofeiro.- O quê? - exclamou assustadíssimo o gigante, tremendo de medo como um coelho: - por hoje basta; agora vai dormir.O gigante, de tão amedrontado, não conseguiu pregar olho durante a noite toda, e ficou a pensar na maneira de livrar-se daquele maldito criado embruxado.A noite é boa conselheira. Na manhã seguinte, o gigante e o alfaiate sairam e foram ter a um brejo todo cercado de salgueiros. Aí o gigante disse:- Escuta aqui, alfaiate, senta-te num galho desse salgueiro; eu gostaria de ver se és capaz de vergá-lo com o teu peso!De um pulo o alfaiate encarapitou-se no galho; prendeu a respiração para ficar mais pesado, tão pesado que o galho dobrou-se até quase tocar o chão. Mas, infelizmente, teve de respirar de novo e, não tendo consigo o ferro de engomar, que sempre trazia no bolso, o galho ao voltar à sua posição normal, projetou-o a tal altura que nunca mais alguém o viu.Se ainda não caiu no chão, deve estar certamente planando pelo espaço até agora.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

Os presentes do povo pequenino

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, dois companheiros: um alfaiate e um ourives, que viajavam juntos pelo mundo. Certo dia, quando o sol já declinava atrás dos montes, ouviram ao longe os sons de uma música tão alegre, tão convidativa que, esquecendo a fadiga, se apressaram em direção do som. A lua brilhava com intensidade, quando chegaram a uma colina, onde viram uma multidão de homens e mulheres pequeníssimos, da raça dos gnomos que, de mãos dadas, pulavam, saltavam e dançavam em farândola; ao mesmo tempo, cantavam em coro, com voz deliciosamente melodiosa. Era a música que tinham ouvido os viandantes.No meio do círculo, estava sentado um velho um pouco mais alto que os outros; trajava roupa toda bordada a ouro, prata e pedras preciosas; a barba longa e branca chegava-lhe até à cintura. Os dois forasteiros detiveram-se e ficaram a olhar admirados aquela dança. Então, o velho fez um sinal, convidando-os, e o povo pequenino abriu caminho para os deixar passar.O ourives, que era corcunda, e como todos os corcundas era mais atrevido, aventurou-se primeiro e foi colocar-se ao pé do velho; o alfaiate, mais tímido, ficara de lado mas, quando viu que se divertiam tão gostosamente, criou coragem e acabou por imitar o companheiro. Então, fechou-se o círculo e os pequenos duendes começaram uma sarabanda cada vez mais louca. De repente, o velho tirou do cinto uma faca e pôs-se a afiá-la com muito esmero; quando acabou olhou em redor à procura dos forasteiros. Estes ficaram espantados, mas não tiveram tempo de refletir; o velho agarrou-os pelo pescoço com força extraordinária e, num abrir e fechar de olhos, raspou-lhes a cabeça e a barba com ligeireza única; depois largou-os e, batendo-lhes no ombro amigavelmente, sorriu, como se quisesse dizer que tinham feito bem em tolerar tudo de boa vontade, sem opor resistência.Em seguida, mostrou-lhes com a mão um monte de carvão que estava ao lado e deu-lhes a entender, por meio de sinais, que, em recompensa da sua condescendência, os autorizava a encher os bolsos. Obedeceram ambos, ignorando, contudo, qual o proveito que poderiam tirar desse carvão. Depois o velho acenou um adeus e eles saíram do círculo, tomaram pelo atalho e chegaram à estrada real. Nesse momento, soou meia-noite na igreja do mosteiro vizinho. No mesmo instante, cessaram os cantos e as danças e toda aquela gente miúda desapareceu, restando só a colina banhada polo luar prateado.Os dois viajantes acabaram por encontrar uma hospedaria; estavam tão cansados que se deitaram na palha, cobrindo-se com os gibões, esquecendo de tirar os carvões dos bolsos. Acordaram pela manhã muito cedo, com a sensação de um grande peso a entravar-lhes os membros; era, simplesmente, o peso enorme que tinham nos bolsos. Meteram as mãos nos bolsos e qual não foi a agradável surpresa ao verem que os carvões se haviam transformado em ouro maciço! E, com grande alegria, notaram que os cabelos e a barba tinham crescido novamente.De pobres que eram, estavam agora muito ricos; o ourives, ambicioso e cheio de cobiça como era, tinha por instinto apanhado mais carvão do que o bom alfaiate e possuía duas vezes mais ouro do que ele. Um ambicioso, se tem muito, ainda quer mais; lastimava não ter enchido também o chapéu, e propôs ao amigo voltar à noite à colina para pedir ao velho um tesouro maior. Mas o alfaiate, de natureza modesta, respondeu:- Não, eu tenho o suficiente; volto para casa, monto uma alfaiataria e caso com a Joana (assim se chamava sua noiva) e seremos muito felizes. Quanto a ti, faze como quiseres; se fores lá, espero-te aqui até amanhã.A noite, o ourives levou dois sacos enormes e foi à procura do atalho que conduzia à colina; lá chegando, encontrou, novamente, os gnomos cantando e dançando como na noite anterior. Tudo se passou igualmente; o velho rapou-o e indicou-lhe o monte de carvão. O ourives não se fez de rogado, encheu os sacos até mais não poder; depois retirou-se e, de volta à hospedaria, deitou- -se radiante e feliz.- Embora pese todo esse ouro, suportá-lo-ei de bom grado, - pensou ele.Cobriu-se com o gibão e adormeceu, antegozando a felicidade de acordar rico como um nababo. Quando acordou pela manhã, correu aos sacos para ver as barras de ouro; mas qual não foi o seu espanto, quando só encontrou carvões negros! E nos bolsos a mesma coisa!Quando voltou a si da cruel decepção, pensou: "Acho que foi apenas um sonho; resta-me, porém, o ouro da véspera,"Foi ao armário onde o tinha fechado; o belo metal cintilante também se havia transformado em carvão cheio de pó. Caiu no chão, o coração despedaçado por dor insuportável; levou a mão à cabeça para arrancar os cabelos e não os encontrou; estava tão calvo como a palma da sua mão.Chorou de raiva; mas não chegara ainda ao fim das suas desgraças; para compensar a corcunda que tinha nas costas, viera-lhe outra na frente. Então, reconheceu que tudo isso era o justo castigo pela sua cobiça, e chorou amargamente. O bom alfaiate que, nesse interim, havia acordado, consolou-o o melhor que pôde, dizendo-lhe:- Tudo não está perdido para ti; és meu amigo e meu companheiro de viagem, viverás comigo e dar-te-ei metade do meu ouro; com o que me resta, ainda sou mais rico do que nunca esperei ser.O bom alfaiate cumpriu a palavra; mas o pobre ourives, como castigo da excessiva cobiça, teve de aguentar pelo resto da vida as duas corcundas e usar sempre um barrete para esconder a careca.Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

A ondina do lago

Wednesday Aug 14, 2024

Wednesday Aug 14, 2024

Houve, uma vez, um moleiro que vivia muito feliz com a mulher. Tinham dinheiro e propriedades e a sua prosperidade aumentava de ano em ano.Mas a desgraça, diz um velho ditado, vem sempre de noite. A sua fortuna, assim como tinha aumentado, voltou a diminuir de ano para ano e chegou o dia em que o moleiro só podia dizer que, unicamente, o moinho era seu. Ele consumia-se de aflição e quando se deitava, após um dia inteiro de rude trabalho, não conseguia dormir e passava a noite rolando na cama, atormentado pelos desgostos.Certa manhã, levantou-se antes do alvorecer e saiu para fora da casa a fim de respirar um pouco de ar fresco, imaginando com isso desoprimir o coração.Passeava ele junto à represa do moinho, já iluminado pelos primeiros raios de sol, quando ouviu um pequeno ruído no lago.Voltou-se e, com grande surpresa, viu uma linda mulher que se elevava, lentamente, do seio das águas.Os seus longos cabelos, que ela segurava junto á nuca com as mãozinhas delicadas, caíam ao longo das espáduas e cobriam-lhe como um manto de ouro o corpo esbelto, alvo como a neve. Percebeu, imediatamente, que ora a ondina do lago e, apavorado, não sabia se devia ficar ou fugir.Mas a ondina chamou-o com voz doce e suave e perguntou-lhe por que motivo estava assim triste. O moleiro, que havia emudecido pela surpresa, custou a responder, mas depois, ouvindo-a falar com tanta suavidade, animou-se e referiu tudo, isto ó, que antes vivia feliz na riqueza, mas agora tornara-se tão pobre que não sabia para que lado se voltar.- Tranquiliza-te, meu amigo, - disse a ondina. - Tornar-te-ei mais rico e mais feliz do que jamais foste cm tua vida. Apenas exijo, em troca, que me dês o que acaba de nascer em tua casa.- Que mais poderá ser senão um cãozinho ou um gatinho? - disse de si para si o moleiro, e prometeu cumprir o que ela desejava.A ondina tornou a mergulhar na água e ele voltou, a toda pressa, para o moinho, cheio de alegria. Ainda não tinha chegado e já a criada saía da casa correndo ao seu encontro para lhe dar a boa-nova que sua mulher tivera um filho.O moleiro estacou como se ferido por um raio. Percebeu que a perversa ondina sabia muito bem o que ia acontecer e o enganara. Portanto, aproximou-se da mulher com a cabeça baixa, não podendo ocultar a angústia; a mulher, ao notar-lhe o aspecto, perguntou:- Então, não te alegras por termos um menino tão lindo?O pobre homem não teve remédio se não contar o que lhe sucedera e a promessa imprudente que fizera à ondina.- De nada me servirá agora a riqueza e a prosperidade, se a troco delas tenho que perder meu filho! - acrescentou ele amargamente. - Mas que posso fazer?Mesmo os parentes que vieram congratular-se com o casal, não achavam remédio.Entretanto, na casa do moleiro voltou a reinar a sorte e a prosperidade. Suas empresas davam os melhores resultados; parecia que as arcas, os cofres e as gavetas se enchiam por si durante a noite. Não levou muito tempo a tornar-se mais rico do que antes. Mas ele não podia usufruir da riqueza tranquilamente, porque a promessa feita à ondina lhe dilacerava o coração. Cada vez que passava junto do lago, estremecia, receando que ela viesse à superfície e lhe recordasse a dívida; nesse receio, não permitia nunca que o filho se aproximasse do lago, dizendo-lhe:- Se puseres a mão na água, sairá a mão misteriosa que te agarrará e te puxará para dentro.Entretanto, os anos foram passando, sucedendo-se uns aos outros e, como a ondina não aparecia, os moleiros tranquilizaram-se.O menino cresceu e tornou-se um moço muito garboso e os pais o mandaram para a escola de um caçador a fim de aprender a arte de caçar.Findo o tempo de aprendizado, quando se tornou caçador muito hábil, um fidalgo rico, que habitava na aldeia, tomou-o ao seu serviço.Vivia na aldeia uma jovem muito gentil e virtuosa, por quem o rapaz se apaixonou; quando seu amo foi notificado, presenteou-o com uma linda casinha. Os moços casaram-se e foram viver na casinha, alegres e felizes, amando-se com grande ternura.Passado algum tempo, o caçador perseguia certo dia um cabrito montes que desembocara da floresta e corria em pleno campo; ele perseguiu-o e disparou a espingarda, matando-o com um só tiro.O rapaz não reparou que estava à beira do lago perigoso e, depois de ter estripado o animal, foi ali lavar as mãos ensanguentadas. Apenas as meteu na água, logo surgiu a ondina, que o enlaçou sorridente com seus braços úmidos e o arrastou para o fundo do lago, tão rapidamente que as ondas se fecharam bruscamente sobre ele.Ao anoitecer, vendo que o caçador não regressava, a mulher inquietou-se. Saiu a procurá-lo c, como o marido várias vezes lhe tinha contado que precisava de precaver-se contra as ciladas da ondina e que não se aventurava a aproximar-se da água, logo adivinhou o que sucedera. Correu ao lago e, quando viu a bolsa do caçador largada na margem, não duvidou mais da desgraça que a atingira.Chorando e lastimando-se, torcia as mãos num gesto de grande desespero e chamava pelo nome o seu bem-amado, mas inutilmente. Correu para a outra margem do lago e tornou a chamá-lo, sem obter resposta alguma; censurou, asperamente, a ondina, sem melhor resultado. O espelho das águas permanecia tranquilo, apenas refletindo a meia face da lua, em quarto crescente, que parecia fitá-la imóvel e misteriosa.A desolada mulher não abandonou o lago. Em passos precipitados, sem descanso, continuava a contorná-lo, ora silenciosa, ora gritando desesperadamente, ora murmurando algumas orações.Por fim, esgotaram-se-lhe as forças e ela caiu por terra, mergulhando em sono profundo. E teve um sonho:Sonhou que trepava, ansiosamente, por entre grandes maciços de rochas; gravetos e espinhos laceravam-lhe os pés, a chuva batia-lhe no rosto e o vento agitava-lhe os longos cabelos.Quando atingiu o cume da montanha, ofereceu-se a seus olhos um aspecto inteiramente diferente: o céu era azul, o ar tépido, o terreno descia em suave declive e, no meio de um prado verdejante e matizado de flores de todas as cores, havia uma cabana.Dirigiu-se a ela e abriu a porta. Lá dentro, viu sentada uma velha de cabelos brancos, que lhe acenou mui amavelmente. Justamente nesse instante, a pobre mulher acordou.Já raiara o dia e ela decidiu logo fazer o que sugeria o sonho.Subiu, penosamente, a montanha e tudo se realizou conforme vira cm sonho. A velha acolheu-a gentilmente, indicando-lhe uma cadeira e convidando-a a sentar-se.- Aconteceu-te alguma desgraça, visto que vens até aqui, à minha pobre cabana solitária! - disse a velha.A mulher contou-lhe, a chorar, a sua desgraça.- Acalma-te, - disse a velha, - eu te ajudarei. Eis aqui um pente de ouro. Espera que surja a lua cheia, volta então ao lago, senta-te na margem e com este pente penteia teus longos cabelos negros. Apenas acabes de pentear-te, deixa o pente aí na margem e verás o que sucederá.A dedicada esposa regressou à casa, mas o tempo até o plenilúnio lhe parecia interminavelmente longo. Finalmente, apareceu no céu o disco luminoso; então ela se dirigiu ao lago, sentou-se na margem e penteou os longos cabelos negros com o pente de ouro. Quando terminou, colocou-o no chão. Daí a instantes subiu um ruído das profundezas, levantou-se uma vaga que rolou até à margem arrastando o pente consigo.Não decorreu mais tempo do que o empregado pelo pente a afundar e abriu-se o espelho das águas, e dela emergindo a cabeça do caçador; não pronunciou palavra, mas fitou a mulher com um olhar muito triste. No mesmo instante, chegou outra grande vaga e cobriu a cabeça do caçador, que tornou a desaparecer.As águas volveram à quietação anterior e a face da lua refletia-se nelas como em espelho de cristal.A mulher retirou-se desesperada, mas novo sonho lhe indicou outra vez a cabana da velha. Na manhã seguinte, pôs-se a caminho e foi desabafar com a velha o seu desespero. Esta deu-lhe uma flauta de ouro, dizendo-lhe:- Espera novamente que surja a lua cheia; depois, pega nesta flauta, senta-te á margem do lago, toca uma linda e terna melodia e, quando acabares, depõe a flauta no chão e espera o que sucederá.A mulher fez tudo, exatamente, como lhe ordenara a velha. Apenas colocou a flauta no chão, veio uma onda enorme e carregou consigo o instrumento.Logo depois a água entreabria-se e aparecia, não só a cabeça, mas todo o dorso do marido. Cheio de ansiedade, estendeu os braços à esposa para estreitá-la ao peito, mas uma segunda onda ergueu-se, rumorosamente, e arrastou-o para o fundo.- Ah! - exclamou a infeliz mulher, - de que serve ver o meu bem-amado se logo o torno a perder?Regressou à casa com o coração sangrando de dor e, pela terceira vez, o sonho lhe indicou a casinha da velha. Ela pôs-se a caminho e, ao chegar lá, a boa velha consolou-a como pôde. Dando-lhe uma roca de ouro, disse- lhe:- Tua causa ainda não está perdida. Espera que apareça a lua cheia, então toma esta roca, senta-te à beira do lago e fia até encheres o fuso. Quando acabares, pôe a roca perto da água e espera o que se deve passar.A mulher executou, ponto por ponto, as instruções da boa velha.Quando surgiu a lua cheia, levou a roca à margem do lago e pôs-se a fiar, diligentemente, até encher o fuso. Mas, assim que a roca foi deposta no chão, levantou-se um tremendo vagalhão, que a arrastou para o fundo da água.Imediatamente, como que impelido por um forte repuxo, emergiu primeiro a cabeça e depois o corpo todo do caçador. De um salto, lançou-se para a margem, pegou a mulher pela mão e fugiram os dois.Mal se haviam afastado alguns passos, todo o lago, refervendo, se levantou num ruído ensurdecedor, esparramando-se pelo campo com uma violência irresistível.Os fugitivos já viam u morte diante dos olhos, quando a mulher, no seu terror, invocou o auxílio da boa velha. No mesmo instante, os dois foram transformados, ela em sapo e ele em rã. A onda que os atingira não os pôde matar, mas separou-os e arrastou cada um para lado oposto.Quando a água se retirou e ambos ficaram em terreno seco, retomaram a forma humana. Mas nenhum dos dois sabia o que era feito do outro, e viram-se entre estrangeiros que desconheciam a sua pátria. Altas montanhas e profundos vales os separavam.Para ganharem a vida, ambos foram obrigados a guardar ovelhas. Durante muitos anos conduziram rebanhos através dos bosques e dos campos, com o coração cheio de tristeza e de saudade.Certo dia, em que de novo sorria a primavera, saíram os dois rebanhos e quis o destino que caminhassem encontro do outro. O rapaz viu, no declive de distante, um rebanho e dirigiu suas. Juntos chegaram ao vale sem se reconhecer, pontificaram bem satisfeitos por não estarem mais tão SÓS.Desde esse dia eles guardavam os rebanhos um ao lado do outro; não falavam multo de si, mas experimentavam uma doce consolação.Certa noite, em que a lua cheia ostentava todo o esplendor no vasto céu, e no silêncio do campo os rebanhos dormiam tranquilamente, o pastor tirou do saco uma flauta e tocou uma belíssima e triste melodia. Quando acabou, notou que a pastora chorava amargamente. Então, perguntou-lhe:- Por quê choras?- Ah, - soluçou ela, - foi numa noite em que a lua brilhava assim como hoje, que pela última vez toquei essa mesma melodia na minha flauta, e a cabeça do meu bem-amado apareceu à superfície da água.O pastor fitou-a, atentamente, e foi como se lhe caísse uma venda dos olhos; reconheceu a sua querida esposa.Ela, também, o fitou, enquanto o luar batia em cheio no seu rosto e o reconheceu.Então, abraçaram-se e beijaram-se ternamente e nem se pergunta se os dois apaixonados ficaram felizes ao ver-se novamente reunidos. Ainda mais sabendo-se completamente livres do poder da pérfida ondina!Este episódio é-lhe oferecido por Podbean.com.

Copyright 2024 Podbean All rights reserved.

Podcast Powered By Podbean

Version: 20240731